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Jornalismo perde rigor ensaístico de Joan Didion

Joan Didion, a jornalista que ficou conhecida pelas suas observações sobre o sistema político americano e análises comportamentais certeiras após a revolução hippie, morreu nesta quinta-feira, 24, aos 87 anos, em decorrência de complicações provocadas por mal de Parkinson. Em mais de seis décadas dedicadas à escrita, Didion publicou livros que se tornaram referências do jornalismo literário, como as coleções de ensaios “O Álbum Branco”, “O Ano do Pensamento Mágico” e “Rastejando Até Belém”.

“Eu estava mais doente do que nunca enquanto escrevia “Rastejando Até Belém”; a dor me mantinha acordada à noite, então por vinte, vinte e uma horas por dia, eu tomava água quente com gim para atenuar a dor e Dexedrine para atenuar o gim e escrevia o ensaio”, diz Didion sobre “Rastejando Até Belém”, obra lançada pela Todavia. Quando a imaginação e o sonho tomaram as ruas contra a caretice em Maio de 68, as livrarias norte-americanas se preparavam para receber os primeiros exemplares dessa obra que fez da autora – até então uma romancista obscura – uma jornalista célebre.

Nascida e criada na Califórnia, Didion colocava em seus textos brilhantes descrições que a transformaram numa das vozes mais importantes do Novo Jornalismo. Assim entrevistou Jim Morrison e Joan Baez. Sua família emigrou para a costa oeste dos EUA no século 19. Ela nasceu em Sacramento, capital do estado, e desde pequena compreendia sua terra como um enigma a ser decifrado, o que é possível perceber nas lembranças que compõem e dão o tom pessoal para “Rastejando Até Belém”.

Aos cinco anos, ganhou o primeiro caderno da mãe. “Ela fez isso para que eu parasse de reclamar e aprendesse a me entreter. Era para eu escrever meus pensamentos”, recordou-se, anos mais tarde. Quando tinha 20, mudou-se a Nova Iorque, onde começou a carreira de jornalista na Vogue, uma das mais importantes revistas de moda, e teve o texto amadurecido sob o comando da editora Allene Talmey. “Todos que passaram por ela aprenderam, cedo ou tarde, a escrever”, disse a repórter.

Joan Didion in 1972. “Her talent was for writing about the mood of the culture,” the writer Katie Roiphe said. “She managed to channel the spirit of the 1960s and ’70s through her own highly idiosyncratic and personal — that is, seemingly personal — writing.”
Didion seguia a receita do escritor e jornalista Norman Mailer - Foto: Henri Clarke

Didion seguia a receita de Norman Mailer, outro craque das palavras que elevou o jornalismo à condição de boa literatura no clássico de não-ficção “Super-Homem Vai Ao Supermercado”, para uma reportagem “extremamente personalizada, na qual o personagem do narrador era um dos elementos na forma como o leitor finalmente avaliaria a experiência”. A jornalista, no entanto, não tinha emprego na Esquire, como Tom Wolfe e Gay Talese, nem escrevia na New Yorker, a exemplo de Truman Capote, nomes que são frequentemente tidos como papas do Novo Jornalismo.

Mas escrevia bem nas páginas do The Saturday Evening Post, após o término de sua experiência nova-iorquina. Didion retornou à costa oeste, com o primeiro livro que escreveu embaixo do braço. “Run River”, como muitas das obras assinadas por Didion, bebia na fonte das experiências familiares e de histórias de pessoas que conhecia de Sacramento, com um foco especial no pai, um oficial das Forças Aéreas que estava com depressão profunda. Em seguida, casou-se com John Gregory Dunne, jornalista da Time, com quem formou uma parceria criativa que durou quatro décadas.

Didion participou ainda da revolução estilística que transformou o jornalismo americano. Junto com os referidos Tom Wolfe, Truman Capote e Gay Talese, além do gonzo Hunter S. Thompson, ela adotava em suas reportagens técnicas de narrativa ficcional, como uso de diálogos, descrições detalhadas e elaborada construção de cena. Foi uma mulher num mundo de homens. Era pequena, tinha um metro e cinquenta e sete de altura, e pesava em torno de quarenta quilos. Sua miudez parava aí, no entanto.

Observadora da realidade, característica que lhe valeu a alcunha de cronista da sociedade americana, trouxe a suas histórias um ceticismo que a eternizou como uma das mais importantes jornalistas do século 20. Numa de suas mais famosas reportagens, relatou em primeira pessoa a revolução dos hippies na década de 60. Noutra, escreveu uma carta para o ator John Wayne, cujas memórias remetiam à infância nos cinemas com a família, para onde ia três ou quatro vezes por semana. Nestes anos, perfilou também o vocalista do The Doors, Jim Morrison.

“Eu gosto de sentar e ver o que as pessoas fazem, não gosto de fazer perguntas”, escreve Didion, em “Rastejando Até Belém”, autora de 19 livros e homenageada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama com a National Humanities Medal em 2012. Segundo Obama, cujo depoimento faz parte do documentário “The Center Will Not Hold”, de Griffin Dune, disponível na Netflix, ela era “uma das mais respeitadas observadoras da política e cultura americanas”.

Sempre com um cigarro à mão, Joan Didion criou uma prosa cristalina, bem-humorada, rigorosa, descritiva, saborosa, interessante, sedutora, com a qual ajudou a explicar as transformações provocadas pela música de Beatles, Rolling Stones, Jefferson Airplane, ou pela literatura libertária lançada por Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Lawrence Ferlinghetti no final da década de 1950, antecedendo a contracultura. Não gostava de atender ligações de assessores de imprensa nem de estar sob os holofotes.

Para ela, a vantagem como repórter era ser “pequenininha, tão neuroticamente desarticulada” que as pessoas tendiam a lhe ignorar. O que passaria despercebido pelos olhos de qualquer repórter pelos dela eram fotografados, como se sua retina fosse uma câmera de Henri Cartier-Bresson. Não por acaso, os artigos publicados nas revistas Life e Saturday Evening Post devem ser objetos de estudo nas faculdades de jornalismo e até mesmo literatura, como exemplos de boa e envolvente escrita.

Interessada por política, após Robert Silvers lhe despachar para El Salvador, numa das guerras patrocinadas pelos Estados Unidos na região, a californiana que se confessava “fraca, preguiçosa e despreparada para qualquer coisa além daquilo que sou paga para fazer, que é sentar e teclar com um único dedo” deu uma guinada total. E logo para a esquerda. Em seus ensaios, muito mais do que pinçar os hábitos da América, escreveu como poucos. “Ninguém escrevia prosa melhor que Joan Didion”, afirmou o crítico John Leonardo. Sem a lisergia de Tom Wolfe e o autocentrismo de Norman Mailer, ela elevou o jornalismo à condição de arte. Hoje, estamos órfãos. E tristes.

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