Louco, sim, louco porque quis grandeza. E quem não quis, meu velho Fernando Pessoa? Tua passagem pela vida, escorregando por entre taças de vinho e poemas rabiscados pela pena da qual não se separava, foi um rastro de originalidade. Afinal de contas, foste tu o autor do cultuado “Mensagem”, tido até hoje como um “poema de exaltação nacionalista dos mais belos que se têm escrito”, como preconizou o jornal Diário de Notícias, em 30 de novembro de 1935, lembra?
Dia triste, tristíssimo. Quer dizer, como lembrará? Pois foi neste dia em que uma intensa produção literária se deu por encerrada. Mas agora, por meio de republicação bancada pela Todavia, cresce o interesse pela obra multifacetada, instigante nos heterônimos e nas imagens poéticas que tornaram-se indissociáveis à genialidade criativa do poeta. E “Mensagem”, livro em que retratou a história portuguesa através do mito e do misticismo, ganha reedição com prefácio assinado pelo crítico literário Jerónimo Pizarro, professor da Universidade de Los Andes.
Para Pizarro, o leitor precisa se deixar navegar pelas páginas de “Mensagem” como se ele estivesse a bordo de um navio, com a descrença suprimida para aceitar como verdadeiras as figuras evocadas e o mito - segundo o estudioso tão bem definido por Pessoa - que “é o nada que é tudo”. “Navegue-se neste livro não tanto à procura da verdade histórica como em busca de uma verdade poética, isto é, sem esquecer que é a obra de um poeta e de um poeta que tentou manter viva a crença numa grandeza vindoura”, orienta o estudioso, oferecendo um roteiro.
Como poucos, Fernando Pessoa compreendia o desengano e o desassossego, ao ponto de ser censurado pela ditadura salazarista, logo ele que, para as más línguas, teria sido um entusiasta do regime implantado por António de Oliveira Salazar. O que, seja com qual lente política se utiliza para analisar, não passa de uma maneira simplista de ver as coisas. E, sem medo de parecer histriônico demais, Pessoa detém envergadura literária semelhante à de um William Shakespeare, Luís de Camões, Lord Byron, William Blake, Walt Whitman e Emily Dickinson.
E foi, para encerrar de vez o assunto, o maior poeta da Língua Portuguesa do século 20. Sua influência estende-se do beatnik Lawrence Ferlinghetti, que inspirou-se no Banqueiro Anarquista do mestre português para criar o personagem idealista e endinheirado que protagoniza o romance “O Amor Nos Tempos de Fúria”, até a geração do desbunde que marginalizou o verso no Brasil, com Waly Salomão e Torquato Neto. Ou seja, colocando gasolina numa velha polêmica, Pessoa - sem ceder à sedução do poema-piada - modernizou a poesia escrita no nosso idioma.
A experiência de leitura proposta por “Mensagem” não abre margem para dúvida. Organizada em três sessões que alinham a obra - “Brasão”, “Mar Português” e “O Encoberto” -, delimita-se o tempo, para usar uma expressão criada pela professora e membra da Academia Brasileira de Letras (ABL) Cleonice Berardinelli, autora da primeira tese brasileira sobre o poeta português. A julgar pela beleza estética desse livro, Pessoa estava certo quando disse que é preciso ter uma grande literatura para se ter um país evoluído, porque ela une língua, política e arte.
“Esta obra oscila entre versos de arte menor e maior, entre tradições poéticas de origem popular e outras mais eruditas, e acaba por produzir uma musicalidade própria e singular, em que ‘a melodia dos poemas avança, mas às vezes retrocede, formando um ritmo que poderia evocar o movimento de uma nau que, para cruzar os mares, deve navegar correntes que ora a puxam, ora a empurram’”, analisa Pizarro, fazendo uma paráfrase de texto escrito pelo tradutor Nicolás Barbosa.
Pessoa era, antes de mais nada, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro
Fernando Pessoa não era “apenas” Fernando Pessoa. Era, antes de mais nada, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. De acordo com estudos publicados nos últimos anos, se somados, os heterônimos, meio-heterônimos (a exemplo de Bernardo Soares), pseudônimos, personagens fictícios e poemas mediúnicos criados pela mente pessoana, com o indispensável auxílio da astrologia, chegariam a cerca de 125 nomes. E essas personalidades, distintas umas das outras, com datas de nascimento e morte definidas, constituem-se no grande legado de Pessoa.
Sai neste mês pela Companhia das Letras a poesia completa de Alberto Caeiro, ou “o guardador de sonhos”, numa edição de bolso que democratiza o acesso à obra de Fernando Pessoa. Nesta edição, o texto crítico é assinado por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, autores também dos dois ensaios que fazem parte da obra. Segundo Martins, dos heterônimos criados por Pessoa, Caeiro corresponde a um “esforço de arquitetura” mais bem-sucedido que os demais. Nele há, continua o ensaísta, “uma ciência espontânea” e um “misticismo materialista”.
Para a professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Leyla Perrone-Moisés, Pessoa não é, para si mesmo, nem “o Gênio” e tampouco “o maldito”, mas aquele que falhou em tudo e, por isso, aquele que não pode ter poder nem nada. “Nem pedir nenhum crédito”, assinala a estudiosa, que é doutora em Língua e Literatura Francesa, na obra “Além do Eu, Além do Outro”. “O poeta se vê totalmente desqualificado, e aceita essa desqualificação sem procurar revertê-la, apenas com um sorriso de ironia do último recurso do nada-pensante.”
No Brasil, Fernando Pessoa é um poeta admirado, tanto que às vezes aparecem assinaturas de poemas falsos, mensagens de auto-ajuda que infestam as redes sociais e percorrem outros espaços da rede mundial de computadores. “O espólio pessoano, estudado por importantes pesquisadores literários, revelou milhares de documentos: esboços de diferentes obras, projetos não realizados, poemas e textos em prosa”, informa Ida Alves, professora de literatura portuguesa na Universidade Federal Fluminense. Mas Pessoa, morto aos 47 anos, ainda precisa ser descoberto.
Veja quais são os relançamentos de Fernando Pessoa
Mensagem
Trata-se de um dos mais importantes livros de poesia em língua portuguesa, um verdadeiro - gigantesco - monumento literário do século 20 que reflete sobre o passado lusitano: as viagens marítimas, os mitos nacionais, o apogeu e a queda do Império. Com pesquisa e edição de Jerónimo Pizarro, um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa da atualidade, o livro traz ainda notas explicativas que guiam o leitor, bem como ensaios de Pizarro e da especialista brasileira Ida Alves. Editora: Todavia. Preço: R$ 54,90 (impresso) e R$ 36,90 (e-book).
Poesia completa de Alberto Caeiro
Nesta edição, que é de bolso, o texto crítico é assinado por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, autores também dos dois ensaios que fazem parte da obra. Segundo Martins, dos heterônimos criados por Pessoa, Caeiro corresponde a um “esforço de arquitetura” mais bem-sucedido. Nele há, continua o ensaísta “uma ciência espontânea” e um “misticismo materialista”. Editora: Companhia das Letras. Preço: R$ 44,90