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As lutas de Consuelo Nasser

Consuelo Nasser levava ao pé da letra um pensamento que resume bem a obra da filósofa Simone Beauvoir: “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Um de seus nortes intelectuais eram os livros "Memórias de uma Moça Bem-Comportada” e “Segundo Sexo”, clássicos do feminismo escritos em 1939 e 1949. Ao que tudo indica, em grande medida por conta das palavras beauvoirianas, Consuelo acreditava que a mulher, assim como o homem, nunca teve um destino biológico definido. Os dois desempenhavam, na visão dela, papéis forjados numa cultura responsável por escolher o que cada um iria fazer na sociedade.

Nada mais atual, não? Nem precisa responder, por favor, é retórico. Se a jornalista, advogada, militante e administradora não tivesse nos deixado naquele 20 de agosto de 2002, cuja partida completa no próximo sábado duas décadas, ela estaria com 84 anos. Narrar a história de uma pioneira do feminismo em Goiás, fundadora do Centro de Valorização da Mulher (Cevam) e redatora-chefe do semanário Cinco de Março é um convite para mergulhar de ponta no mar dos enfrentamentos, das rupturas, da atuação política, das angústias da existência e, em razão disso, da preocupação social em transformar a vida.

Até o desfecho de sua existência, Consuelo esteve em dois mundos: a da aprisionada ao papel de mãe e esposa e da libertária criada em torno da formação intelectual, o que lhe proporcionou uma carreira que está registrada na história da imprensa goiana. Além, óbvio, das lutas coletivas pelas quais se interessou desde a juventude. A verdade é que a trajetória de Consuelo Nasser, segundo a dissertação “Sororidade com Saber Goiano: o Feminismo Pioneiro de Consuelo Nasser”, serve como exemplo do que fazer para ingressar a este processo emancipatório, seja por meio do estudo, da escrita, da discordância e da criação.

“Mas as estruturas de poder patriarcais são muito fortes e antigas e apenas uma mulher não é suficiente para quebrá-las ou enfraquecê-las, é necessária uma força conjunta e sororidade entre todas para que essa luta comece a mudar a realidade”, anota a pesquisadora Adrielly Melo Borges, em trabalho defendido na Universidade Estadual de Goiás (UEG). Nas palavras da própria Consuelo, como se fossem um farol iluminista, o feminismo é uma luta avançada pela igualdade de direitos. “O machismo, ao contrário, é retrógrado”, refletia ela.

Consuelo Nasser – Wikipédia, a enciclopédia livre

Filha mais nova das duas que Gabriel Nasser teve, Consuelo nasceu na aldeia dos pais, entre Caiapônia e Bom Jardim, em Goiás. Aos cinco anos, foi levada para Uberlândia (MG), onde morou com a irmã mais velha do pai. Mas o progenitor, com câncer, precisava ir atrás de recursos médicos, o que levou-o ao Rio de Janeiro. Tempos depois, ele morreu e, em seguida, a mãe se casou. Ganhou, então, mais três irmãos: Eduardo, Paulo e Sônia Regina Santos Penteado. Com Sônia, que virou jornalista, teve uma relação de proximidade, pois ela se casou com Telmo de Faria, amigo e sócio de Batista Custódio no Cinco de Março.

No Rio, então capital do Brasil e cidade na qual conviveu com escritores como Jorge Amado, Peregrino Júnior e Carlos Drummond de Andrade, chegou a estudar na Faculdade Nacional de Direito, hoje unidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para se manter durante o período da graduação, Consuelo trabalhou em instituições privadas, entre elas a União Brasileira de Escritores (UBE-RJ). “Sempre movida pela paixão, ela amava e odiava apaixonadamente”, afirma a jornalista Carla Monteiro, em reportagem que saiu neste DMRevista na ocasião em que a jornalista completou 80 anos, no ano de 2017.

Em 1959, faltando um ano para obter diploma em Direito, Consuelo resolve voltar para Goiânia, na companhia do tio Alfredo Nasser, que tinha acabado de ser empossado como deputado federal, mandato que exerceu até 1963. O cenário político goianiense estava em ebulição, com secundaristas saindo às ruas para se manifestar contra a alta no preço das passagens no transporte coletivo. Entre uma pauta em torno dos ônibus e melhorias no sistema educacional, os militantes protestavam contra o valor das mensalidades escolares.

Cinco de Março nasceu das manifestações estudantis, em 1959

Numa reação desproposital à insurreição estudantil, o governador José Feliciano, que foi mandatário de 1959 a 1961, pelo PSD, mandou que suas forças de segurança reprimissem, com violência, as manifestações realizadas em 5 de março de 1959. Nesse dia, por causa da opressão, um estudante secundarista morreu durante uma passeata que foi pacífica em frente ao Mercado Central de Goiás. Consuelo Nasser, Batista Custódio, Telmo Faria, Javier Godinho, Valterli Guedes e Zoroastro Artiaga faziam parte do movimento.

Após o incidente, realizou-se reuniões na casa de Alfredo. E, numa delas, foi deliberado que o grupo iria criar um jornal cujo nome seria a data do massacre policial, para nunca mais esquecê-lo. Consuelo, então, pediu para que o tio lhe doasse as oficinas do Jornal de Notícias, veículo que o projetou nos anos 1950. O maquinário gráfico, financiado pelo líder do PSP em São Paulo, Adhemar de Barros, era capaz de imprimir em duas cores e duas páginas ao mesmo tempo, o que configurava um grande avanço tecnológico.

Mas ainda faltavam mais máquinas, que foram doadas por Randal do Espírito Santo Ferreira. O comando da redação ficou por conta de Batista Custódio e Telmo. Consuelo, por sua vez, regressou ao Rio de Janeiro e, de uma vez por todas, terminou os estudos, retornando para Goiânia em 1962, quando começou a trabalhar na Assembleia Legislativa de Goiás e assumiu o posto de redatora-chefe do Cinco de Março. Quem a convidou foi Batista.

Apesar da censura gerada pela derrocada da democracia por causa do golpe militar de 1964, o Cinco de Março seguiu com uma linha editorial voltada a denúncias de corrupção. Segundo o professor Joãomar Carvalho de Brito Neto, os jornais da época eram conservadores. “E o Cinco de Março era um semanário. Saía às segundas e seu ponto forte eram as denúncias de noticiário de povão, tinha grande crítica na parte política, incomodava a Deus e todo mundo, o que gerava medo nos políticos”, afirma ele, em depoimento às professoras da UFG Rosana Borges e Angelita Pereira, no artigo “História da Imprensa Goiana: Dos Velhos Tempos da Colônia À Modernidade Mercadológica”.

Entre os textos mais apimentados publicados pelo semanário, um deles fez história: a notícia que denunciava um rombo de CR$ 5 milhões nos cofres da Polícia Militar de Goiás. De acordo com a matéria, cuja fonte era um oficial da PM, os policiais rifaram armas e munição para cobrir o buraco nos cofres antes que o esquema fosse descoberto por algum superior. Assim que o jornal abriu neste dia, bastaram poucas horas para que dois jipes da PM lá fossem a fim de atirar e quebrar toda a sede. Foi um mês sem circular.

A imprensa nacional protestou, de acordo com Rosana e Angelita. Ainda conforme as estudiosas, embora tenha recorrido ao Judiciário, o Cinco de Março jamais foi ressarcido. O jornal circulou até 1979 e fez história na mídia impressa brasileira. (M.V.B)

Com Cevam, Consuelo ajudou a combater violência contra a mulher

Sucesso de vendas, o semanário Cinco de Março chegou à marca de 60 mil exemplares comercializadas, em 1965. E, cinco anos depois, o jornalista Batista Custódio foi preso por crise de opinião. Consuelo Nasser, então, passou a administrar o jornal e esteve à frente de uma cruzada para a libertação do esposo, que ficou oito meses preso.

Esse esforço causou-lhe um esgotamento, obrigando-a a se afastar do trabalho até 1982. Sua volta à redação ocorreu em outubro de 1984, quando o DM foi fechado. No ano seguinte, Consuelo Nasser criou o jornal Edição Extra, que teve a sua circulação interrompida em 5 de fevereiro de 1985, quando o Poder Judiciário mandou interditar a Unigraf, gráfica que edita este jornal.

Segundo a jornalista Carla Monteiro, Consuelo Nasser estava decidida a retornar ao jornalismo. Com algumas economias da amiga Rosângela Mota, ela e o filho Júlio Nasser conseguiram criar a Revista Presença, que começou a circular em dezembro de 1985. Consuelo estava prestes a completar 47 anos de idade. “Uma mídia editada e dirigida exclusivamente por mulheres”, afirma Carla, em texto que saiu neste DMRevista, em 2017.

No início dos anos 1980, afastada do jornalismo, Consuelo observava que a cultura agrária estava entranhada na sociedade goiana e, junto de Linda Monteiro, Mari Baiochi, Marília Vecci, Amália Hermano, Belkiss Spenciere, Gloria Drummond, Maria Cabral, Ivone Silva e Gracie Clímaco, lutou para criar o Centro de Valorização da Mulher (Cevam).

O objetivo era mobilizar mulheres numa frente contra a violência que as atingiam. Na inauguração, numa foto histórica, vê-se Spenciere, Monteiro, Guilhermina  na companhia da poeta vilaboense Cora Coralina. Entristecida pelo suicídio do filho Fábio Nasser, Consuelo Nasser partiu em 20 de agosto de 2002. Ela estava com 63 anos.

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