A cálida voz da Zimbabwe novecentista
Agência Brasil
Publicado em 8 de agosto de 2020 às 17:04 | Atualizado há 5 anos
Guilherme Moura, estudante de letras e pesquisador, discorre sobre questões referentes à literatura africana
A literatura africana sempre ocupou um espaço subalterno na produção literária internacional, posição que é reflexo do apagamento histórico marcante no processo colonial, persistente até os dias de hoje. Porém, vislumbrar o território africano como um local de riqueza e diversidade sociocultural é o ponto de partida para repensar o cânone e dar visibilidade a uma literatura de grande valor. Esse percurso da exclusão remonta ao mito da superioridade étnica, construção iconoclasta do branco europeu e caminho importante para a consolidação do mercantilismo.
Na África novecentista, a ressonância
da exploração colonial e do imperialismo presente intensifica a desigualdade
social em consideração à população mundial. A divisão internacional do trabalho
a situa numa posição de omissão e indecisão nas principais decisões econômicas
a nível global; esse cenário indica uma persistência nos baixos números do
Índice de Desenvolvimento Humano e em outras fontes de análise, como saúde,
saneamento básico e alfabetização.
Nesse panorama, a arte se debruça por
questões socioideológicas e busca retratar as guerras civis e os conflitos
internos e externos do sujeito, imerso na efervescência política africana, nas
fronteiras europeias e nas consequências de uma história marcada por exploração
e silêncio. A literatura segue a mesma proposta e procura materializar em sua
tradição uma voz que ecoa contra a centralização política e a divisão social do
capitalismo financeiro. Com linguagem impactante, a produção de Dambudzo
Marechera (1952-1987), romance e poeta zimbabuense, revela algumas das mazelas
de Zimbabwe, seu país natal. Seu estilo apela, impetuosamente, às denúncias de
um território devastado pela miséria e pela falta de assistência à saúde e à
educação.
Na antiga Rodésia do Sul, Marechera
publica sua obra mais conhecida, The
House of Hunger (A Casa da Fome,
numa tradução literal), em 1978, coleção de curtas narrativas autobiográficas
sobre a repressão do governo de Ian Smith, após a independência do país, aflito
entre a pobreza e a corrupção. Embora pouco conhecida mundialmente, a obra de
Marechera é uma grande admiração aos jovens leitores de seu país, que almeja
uma sociedade mais equiparada. Apesar da vida curta, de apenas 35 anos,
vivenciou a discriminação étnica e a violência africana em seus níveis mais
variados com forte resistência, sendo expulso da Universidade do Zimbabwe e da
Universidade de Oxford por participar de movimentos eufóricos contra a
desigualdade em seu continente.
Há um dissidente na sopa eleitoral!
[…]
A lua não vai baixar
Primeiro desajeitada, lancinante de constrangedora
Mas com Vênus ascendendo, grito e pulo de alegria
Quando os lençóis estão finalmente em silêncio
Não pergunte “O que você está pensando?”
Não pergunte “Foi gostoso?”
Não se sinta mal porque estou fumando
Os inseguros perguntam se sentem mal
Que dizem depois do ato
“Me conte uma história”
E você já deve saber bem
Não fale em casamento se quiser essa reconciliação
Venha a durar
(MARECHERA, Dambudzo. Cemetery of Mind, 1947)
Com ironia e linguagem popular, Dambudzo Marechera satiriza a sociedade zimbabuense nas inúmeras esferas que a compõem. O acervo deixado pelo poeta é fonte para reconhecimento da Zimbabwe novecentista, bem como de seus problemas socioeconômicos e sua inscrição na África resignada e na intensa globalização entre os demais continentes.
Texto: Guilherme Moura