Aprendendo o ideoleto de Manoel
Redação DM
Publicado em 23 de dezembro de 2015 às 20:52 | Atualizado há 10 anosDizia que achava tudo no pézinho da letra. O que era sério para ele se escondia nos menores objetos ou naqueles que flutuam. Catava o que era preciso no quintal de casa em meio a caramujos pregados na existência e um rebanho de formigas. Em uma tarde com cheiro de passarinho lhe puxaram pelos pés a poesia. Os discursos de arame demarcando a ausência de limites do papel. Começou a meter o pé, cair de boca, cheirar livros novos na estante. Principalmente aquele que fala sobre o nada, o livrinho livrado de dimensões ou cercas, escrito em perfeito idioleto ou melhor: o dicionário do bocó. Levava o aglomerado de poesias em contato com a axília e partia andando pelas estradas vermelhas de meio-fio verde.
Bocó achava que tinha um professor dentro daquelas páginas, alguém que estava lhe dizendo como errar direito a sua língua, a sua rota ou ensinando que aquilo que não é de valor para a maioria era para ele de muita importância. Mas tinha medos variados de trezentos e dois quilos e metros de altura.Tinha medo das coisas que voavam, por exemplo, que sem significado algum ou corrente amarrada ao chão saíam transportando pessoas carregadas do mesmo medo que ele tem. Tinha medo de que um avião caísse no seu quintal e fizesse um estrago nos rabiscos que havia feito na terra vermelha. De não ter coração algum dentro da caixa torácica e lembrar que ainda fuma demais.
Pegou na casa vários pregos da parede. Pensou olhando o furo entre os tijolos e imaginou que ali dentro viveria um homem muito menor e mais medroso. Pegou do lixo algumas latinhas vazias de siginificado e cerveja. Pregou na geladeira aquele poema, O Andarilho, e saiu por aí com tudo no bolso. Meio bocó ele pisou forte, havia deixado o mundo real de lado e feito a raíz no pé das letras, algo lá atrás. “Só existo no papel?”, ele pensava enquanto preenchia a escuridão escrevendo no muro a palavra “luz”.
Fotografava alguma paisagem e diretamente o horizonte seguia para a sua face e para a folha. Olhava por horas no espelho retirando daqui uma fagulha de raio de sol, mudando para a direita as primeiras gotas da tempestade e deixava cada vez mais limpo o sol de outono alojado no olho. Mas este sabia que só existiria dentro de um papel anatomicamente preparado de 280 milímetros de gramatura. Foi aqui descrito como um, pela primeira vez, uma palavra de barro na ponta da caneta atômica.
Dizia ele que Poesia não é apenas enfeitar de contrários, dizer que amor e dor tem essa paixão dividida entre calmaria de um prego na parede e às três horas da tarde no trânsito. O resto é fácil assim mesmo, como criar um bocó no papel pardo. Mas isso de acordar e lavar o rosto às 6h45. De ter que “alô, eu gostaria de falar com o bocó da silva neto”. Isso puxava o pé pra baixo, fazia o olho semi-aberto se dilatar a cada intervalo, e na primeira escada do seu prédio quando descia a pata prendeu, o prego rasgou a parede da carne. A lata amassou e também foi rasgando. Bocó andarilho. Foi andando até o céu.
Viver pela poesia
Dentro dos poemas de Manoel de Barros cabem apenas o que há de pequeno. Mas o menor, ou seja, o que é mais inválido para os outros se torna maior do que um arco-íris. Nascido no Mato Grosso, em Cuiabá, e mudou-se quando criança para o Mato Grosso do Sul, onde viveu até o final da sua vida. Retratou a vida no Pantanal mato-grossense em seus livros, mas seu trabalho vai muito além. Dizia que era sim um poeta do Pantanal e que, acima de tudo, era um poeta sobre o nada.
A história de Manoel (e o que vemos na sua poesia) é algo como brincar no quintal de casa observando sapos, formigas e a natureza. A simplicidade é o formato e o tema do poeta do Pantanal que afirma não ter servido para nada e por isso serviu para a poesia. Trabalhou durante anos da vida para finalmente conseguir comprar uma fazenda no Mato Grosso do Sul. Quando a fazenda começou a dar lucro e Manoel não precisava mais trabalhar, ele disse que havia comprado aquilo que sempre quis ter: o ócio.
Durante anos se dedicou apenas para a poesia e publicou livros como Poemas concebido sem pecado, Compêndio para uso dos pássaros, Gramática expositiva do chão, Livro sobre o nada e outros. Dizem que Manoel faleceu no dia 13 de novembro do ano passado, pouco antes de completar 100 anos de idade. Mas, de acordo com a lenda, os animais do Pantanal mato-grossense não morrem, apenas se tornam outros animais. Acredito que Manoel se tornou borboleta ou passarinho.
Retrato do artista quando coisa
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
Gorjeios
Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
– Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.
O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O fazedor de amanhecer
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.