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Ateu psicodélico, Zé Ramalho reina como expoente da música brasileira

Músico traz a Goiânia canções que fizeram dele um dos artistas mais importantes dentre os nordestinos, que marcaram anos 70

Artista se notabilizou como uma das vozes mais originais da música brasileira Artista se notabilizou como uma das vozes mais originais da música brasileira

Se há mesmo uma crise do delírio instaurada, o jeito é escapar da racionalização da música brasileira ao som do cantor Zé Ramalho, nome central dentre os compositores surgidos no cenário nacional nos anos 70. A boa notícia? O músico, nascido em Brejo do Cruz (PB) em 1949, garante que irá enfileirar hits atrás de hits no show realizado neste sábado, 20, na Arena Multiplace, uma interessante novidade nos circuitos cultural e noturno de Goiânia.

Com Zé, então, tudo se torna melhor. Mas o artista, responsável por apontar o cancelamento da fantasia, diz - com precisão - que a racionalização da MPB começou lá pelo final dos anos 70. E a troco de quê? O objetivo não era outro a não ser atender às necessidades industriais da cultura pop. De uma hora para outra, tudo precisou ser bem explicado. De uma hora para outra, “corvos marinhos voadores” deixaram de ser legais. De uma para outra, a literalidade roubou o lugar das metáforas. De uma hora para outra, nada de psicodelia, demodê demais.

Menos para Zé. Nadando contra a corrente, o músico entrou no estúdio para gravar 12 músicas de sua lavra florescida nos últimos dez anos. A produção ficou por conta do guitarrista Robertinho do Recife: ritmo lisérgico, versos nonsenses, música gostosa. Era o retorno do cantor àquela cena recifense doidona, era o retorno ao underground dos anos 70, era o retorno à peleja do diabo contra o dono do céu. “Turbilhão de imagens”, resume Zé Ramalho, no texto do encarte. “Ateu Psicodélico” viaja aos “montes de areia em castelos”.

Surrealismo

Tanto que há quem o considere, como o crítico Zuza Homem de Mello, o mais original personagem nordestino despontado na música brasileira. Zé funde estética saborosamente surrealista com o estilo roqueiro. Sua voz cavernosa, situada numa região de canto rouco e profundo, destaca-lhe no meio dos maiores intérpretes do cancioneiro nacional. É um para-raio de cometas, que morde pontas e, como numa cópula, silencia almas agitadas.

“Ateu Psicodélico” tem como muso inspirador Arnaldo Baptista, músico que fez história na banda tropicalista Mutantes. Há, no entanto, diferenças entre eles: um tropicalista e o outro pós-tropicalista, um sudestino e o outro nordestino, um maluco e o outro visionário. Só que vinculá-los não é exagero. Zé Ramalho já falou sobre a importância de Arnaldo, que até pintou, por sua vez, uma tela ao amigo psicodélico da Paraíba - publicada nas redes sociais.

Em entrevistas, Zé se define como “ateu psicodélico”. “Apesar de ter sido criado no Nordeste por uma família extremamente católica, eu me liberei dessas coisas com 15, 16 anos. Toda religião, para mim, tem um conceito de explorar, também, as pessoas, a sociedade”, disse o músico, embora tenha polemizado, na década passada, ao dar declarações controversas - para usar um eufemismo. “Acho uma merda andar de avião com todas as cadeiras chapadas, não há mais primeira classe, executiva, é pra tudo ser igual.”

O artista incorporou Danuza Leão e, sem mais nem menos, saiu criticando o comunismo, ou - melhor ainda - o que chamou de “social-comunismo do século 21”. Se deve-se ou não perdoar ídolos artísticos que flertam com algum tipo de ideia autoritária, é uma discussão que parece não ter fim: Zé é um músico brilhante, sua discografia virou fundamental à MPB e seus hits atravessam gerações. Assim ele se mostra em “Ateu Psicodélico”, no qual faz uma profecia à música nordestina, dizendo que já cantou com Raul Seixas, Gonzagão e Sepultura.

Faixa a faixa, o disco se adorna nas batidas cardíacas ao estilo Pink Floyd. Sexo explícito, blues-rock, ex-garoto de alugel. A liberdade, como canta o artista em “Cópula”, é uma ave voadora, a boca treme, vai balbuciando, mordendo pontas de todas as tetas. Mais adiante, a foda retorna às letras, agora num forró que, na visão do crítico Pedro Alexandre Sanches, possui uma roupagem orinetal. “As histórias desses sonhos que vivi/ são estilhaços se espalhando por aí”, troveja o cantor, temperado à estética gonzaguiana.

Desde os anos 70, Zé Ramalho demonstra compromisso com a ideia de um universo absurdo. Soa apocalíptico, contraditório, literário. Uma tendência criativa, vamos dizer assim, esotérica. Mas sempre embalada por refrões fixantes que, sedutores, criativos e excitantes, fazem qualquer pessoa dos vinte e poucos aos oitenta ter alguma música de Zé na ponta da língua. Dialogando com o realista Honoré de Balzac, é um ateu que vai à missa.

Artista autêntico

Para Zuza Homem de Mello, musicólogo que se debruçou sobre João Gilberto e a era dos festivais, Zé Ramalho se tornou um artista autêntico ao misturar frevo e forró. Com isso, criou uma música dançante, a deliciosa agalopada, como se degusta na música “Canção Agalopada”, que abre o disco “Terceira Lâmina”, de 1981. A faixa se baseia em versos do libreto de cordel “Apocalypse de Zé Ramalho”, editado em 1977, auge psicodélico do artista.

“A temática, de sua grande intimidade em vista das leituras da Bíblia, focaliza, mais do que os conceitos, a riqueza das imagens”, aponta o estudioso. Esse elemento poético, aliás, se manifesta em músicas como “Frevo Mulher”, “Chão de Giz”, “Banquete dos Signos”, “Garoto de Aluguel” e “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa” - todas possuem refinados recursos líricos ou imagens poéticas. São elementos em abundância na obra de Zé.

“Um nordestino desnorteador, Zé Ramalho provoca invariavelmente um acontecimento com suas aparições no cenário musical brasileiro. Simboliza um visionário solene e mágico, causador de fecunda sensação em duas diferentes gerações da juventude brasileira”, afirma Zuza Homem de Mello. A despeito dos hits, o leitor goiano que for ao show de Zé na Arena Multiplace, complexo do Laguna Gastrobar, deve ter em mente uma coisa: o artista paraibano vai muito além dos seus clássicos. Aos 73 anos, ele é o nosso ateu psicodélico.

Anote aí

Onde: Arena Multiplace

Endereço: Alameda Barbacena, Qd. 28 - Lt. 18 - Vila Alto da Glória, Goiânia

Ingressos: baladapp.com.br

Valor: a partir de R$ 120

Classificação indicativa: 18 anos

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