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Como era a relação de Chico Buarque com a ditadura militar

Pesquisador descortina relação de artista com regime em livro que será lançado em maio. Sociólogo diz que Chico teve papel fundamental nesse momento histórico

Chico Buarque, cantor e compositor - Foto: Fernando Proner Chico Buarque, cantor e compositor - Foto: Fernando Proner

Erraram aqueles que caluniaram Francisco Buarque de Hollanda, 79. Nas próximas semanas, o livro “O Que Não Tem Censura, Nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística Durante a Ditadura”, assinado pelo escritor Márcio Pinheiro e publicado pela L&PM, chega às livrarias. Por meio de consistente pesquisa documental, o autor desnuda a relação do cantor-compositor-escritor com a censura durante os tempos de ditadura civil-militar.

A informação foi divulgada em primeira mão na coluna do jornalista Lauro Jardim, no jornal “O Globo”, principal diário do Rio de Janeiro. O DM a confirmou nas redes sociais de Márcio, autor também da biografia do semanário O Pasquim, “Rato de Redação: Sig e a História do Pasquim”, pela Matrix Editora. Tal qual na historiografia do debochado jornal, espera-se um texto ágil, saboroso e requintado, atributos pelos quais Márcio é elogiado.


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Caetano Veloso e Chico Buarque. Foto: Acervo Pessoal

Há que se lembrar - e autor o faz, diga-se - do encontro entre o ministro da Educação de Ernesto Geisel, Ney Braga, com artistas “íntimos” da mordaça ditatorial. Sutilmente irônico, Chico aposta no humor e, sem esquecer do sorriso zombeteiro depositado no canto da boca, deixa o recado. “Um encontro com um ministro, senhor ministro, é raro, mas os encontros com a censura são tão comuns”, soltou o artista, que falava com propriedade de causa.

À imprensa, em seguida, o cantor revelou que a autoridade evitara certos assuntos diante dos artistas. “Não foi pessoal e nem tratou do problema da censura. Esse problema não foi criado por mim e nem posso solucioná-lo. Sou contra a censura e pronto. Se ela aliviar um pouquinho, é bom. Se ela sumir, é o ideal”, declarou. Conforme relatório do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), os agentes da repressão monitoravam Chico de perto.

Eram frequentes visitas a shows, intimações a depoimentos forçados e censura a canções. Hoje, aos cuidados do Arquivo Nacional, os documentos - que podem ser obtidos via Lei de Acesso à Informação pela sociedade civil - detalham ainda quando os militares cobraram-lhe explicações sobre viagem que havia feito a Cuba na segunda metade dos anos 70. O escrivão do Centro de Segurança de Informação da Aeronáutica (Cisa) reportou que, “questionador”, o desobediente interrogado dissera ter perdido “precioso” tempo depondo à polícia.


		Como era a relação de Chico Buarque com a ditadura militar
Capa do disco "Construção", lançado em 1971. Marcus Vinícius Beck

‘Foco múltiplo’

Sob o endurecimento do regime pelo AI-5, baixado em dezembro de 68, Chico lançou o elepê “Construção”, em 71. A obra é interpretada neste século 21 como “foco múltiplo de inflexão na carreira do cantor”, segundo texto publicado pela jornalista Bia Abramo na seção “Discoteca Básica”, da revista “Bizz”, no número 197. Um ano antes, em 70, a censura lhe provocou dores de cabeça. Mesmo que tenha vendido 100 mil cópias, o compacto “Apesar de Você” acabou retirado das lojas, de modo a colocar no artista uma pecha de subversivo.

Era um samba animado, a música. Um samba, melhor dizendo, esperançoso. Na primeira estrofe, o eu-lírico repete por três vezes a frase “amanhã vai ser outro dia”. A grosso modo, pode-se decretar que a canção indica habilidade de seu compositor para a prática política, mas sem enveredar pela adjetivação fácil - característica dos textos panfletários. O elepê “Construção”, crê Bia, representa “uma espécie de balão de ensaio de todos esses vetores”.

Rigoroso na estética, lírico na tabelinha com o poeta Vinícius de Moraes e sociológico na semântica da faixa-título, Chico bufa de raiva. Ironiza, em “Deus lhe Pague”, mais um dia de agonia: “pra suportar e assistir/ pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir/ e pelo grito demente que nos ajuda a fugir”. É menos cifrado em “Cotidiano”: “Toda noite ela diz pra eu não afastar/ Meia-noite ela jura eterno amor/ E me aperta pra eu quase sufocar”.

“Construção”, a música, narra a morte de um operário da construção civil, algo comum nos anos 70. Ao fazer isso, Chico dialoga com a fotografia documental de Lewis Hine, cujos retratos, dentre outras coisas, mostram a degradação proletária e a falta de segurança dos trabalhadores estadunidenses, no início do século 20. Já em “Olha Maria”, o fio condutor se desenrola em torno da sexualidade, quando um homem vê a esposa ir embora, mas ainda é apaixonado por ela.

Não bastava, todavia, espumar ódio aos milicos - apesar da ternura sentimental. Como seus discos eram vetados pelos censores, o compositor resolveu tomar uma atitude mais drástica, criando o pseudônimo Julinho da Adelaide. É dele e Leonel Paiva (fictício) os créditos de “Acorda, Amor”, lançada no vinil “Sinal Fechado”, de 74. O repertório era composto basicamente por canções escritas pelos aclamados Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Walter Franco e Paulinho da Viola, numa tentativa de driblar a implicância dos militares.

Julinho até “deu” entrevista para “O Pasquim”, feita por Mário Prata. Em carne e osso, Chico, que se viu obrigado a exilar-se em Roma, no ano de 69, publicou no esculhambado semanário carioca a crônica “Um Lugar ao Sol”, na qual aproveita para avacalhar - ao sabor do tempero da ironia buarquiana - o governo vigente. “O vosso correspondente em Roma não se encontra em Roma. Em Roma não há ninguém”, escarneceu o artista brasileiro.

Se nas décadas de 60 e 70, diz o sociólogo Renato Araújo, a obra buarquiana posicionou-se contrária à ditadura e preocupou-se em reafirmar o Brasil como uma nação possível, resolvendo problemas gestados no berço do capitalismo ou propondo devoção às tradições estéticas da brasilidade, Chico entendeu que era preciso “carregar a tradição para frente”, conforme diz Caetano Veloso. Consolidou-se, então, como cânone do cancioneiro brasileiro.

“Ele teve um papel fundamental em um momento histórico da produção musical que passou pelo regime militar”, observa Renato, na dissertação de mestrado “A Representação dos Setores Subalternos na Obra de Chico Buarque”, defendida na UFG, em 2017. Segundo ele, a obra construída por Chico dá ideia da pluralidade brasileira. Contudo, o projeto artístico, de natureza nacional-popular, tomou o caminho da crise a partir dos anos 80, com o desabrochar do rock e a inserção do neoliberalismo no contexto terceiro-mundista.

Chico jogava luz sobre o novo malandro, o político gerado no seio da ditadura que realmente se dava bem Miriam Bevilacqua Aguiar, pesquisadora

Chico resistiu à ditadura com bom-humor

Na tese de doutorado, a pesquisadora Miriam Bevilacqua Aguiar aponta que, na década de 70, o ano de 74 foi o de maior cerco do governo militar às composições buarquianas. “O cerceamento vinha se aprofundando já há algum tempo”, afirma, no trabalho “Tempo e Artista - Chico Buarque, Avaliador de Nossa Cotidianidade”, defendido na USP. Para ela, muitas vezes, a resistência do cantor-compositor ocorreu por meio do bom-humor.

Miriam diz ainda que o compositor não apontava o dedo para os militares de forma clara, mas retratava - isto sim - a situação quase como um espectador, ou ainda, como um participante que gostava mais de outros tempos. “Em ‘Homenagem ao Malandro’, Chico jogava luz sobre o novo malandro, o político gerado no seio da ditadura que realmente se dava bem e, aparentemente, dentro da legalidade”, pontua a estudiosa, na vasta pesquisa.


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Veto dos censores à música 'Deus lhe Pague' - Foto: Arquivo Nacional.

Nem por isso, se for olhar para a obra buarquiana em sua totalidade, o artista deixou de retratar as peculiaridades da cultura brasileira. Ao contrário, disco a disco, show a show e single a single, mantém-se relevante com uma brasilidade tão encantadora quão reflexiva: constrói identidade nacional, conscientiza o público acerca dos distúrbios sociais e busca as raízes nacionais. Chega-se à conclusão que, em razão disso, há um resgate do samba e do malandro, no sentido da dialética proposta pelo crítico literário Antonio Candido, em 1970.

Letrista erudito, homem à esquerda e voz favorável aos desvalidos, Chico Buarque driblou simpatizantes do caos, como um Garrincha fintando o atraso num Maracanã lotado. Não há contrassenso justo sobre esse senhor/rapaz de olhos azuis, já que se mostrou autor de obra densa - embora na literatura, grande paixão, seja curta. Entre turnês aguardadas, canções autorais lançadas de forma esparsa e livros aplaudidos, é na música que chega às massas.

Numa conversa com a equipe da extinta revista “Bundas” publicada em 2000, ao longo de três horas e com vista para o Rio de Janeiro a partir do Leblon, mostrou-se sofisticado. Sofisticado porque ele, Chico, deixou pra lá o pedestal de lenda. Para os jornalistas designados a entrevistá-lo, o carioca de sorriso sedutor era mais importante do que o ator Harrison Ford e a cantora Madonna juntos e, sentado com a patota, falando da vida, de poesia e parcerias, revelou-se imortal - e, em termos institucionais, ele é desde o Camões.


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Veto à música 'Cálice' - Foto: Arquivo Nacional. Marcus Vinícius Beck

Chico, desde os anos 60, não sai de moda. Segundo Millôr Fernandes, por anos, o compositor foi a “única unanimidade” do Brasil. O tempo - não exatamente nesta ordem - passou. E ele casou-se com Marieta Severo, separou-se dela, adquiriu as responsabilidades da paternidade, seu repertório amadureceu-se, ficou mais agressivo (liricamente agressivo), escreveu livros (artisticamente relevantes), exilou-se (exilou-se porque ditadura). Mas a unanimidade, pelo menos entre músicos, compositores ou pesquisadores, é quase a mesma.

Arrebatamento

Para eles, Chico Buarque é gênio. Vê-lo no palco é um “arrebatamento”. Cada uma das canções que compôs nas últimas seis décadas carrega “assombro” de elegância, ritmo e letra. São todos elementos capazes de fascinar diferentes gerações de fãs, mexendo com homens e mulheres dos 17 aos 90 anos, inseridos em contextos díspares uns dos outros, mas convencidos da necessidade em se pensar o Brasil. Isso transporta-o, óbvio, ao panteão dos maiores cancioneiros brasileiros - ou talvez até mesmo da língua portuguesa.

Escutá-lo é como matar a sede na saliva dos beijos da pessoa amada. Sabe-se que a obra musical buarquiana insere seu autor dentre os maiores artistas do século 20. Discordar disso, em hipótese alguma, é expertise, pois - ao fazê-lo - briga-se com os fatos. As letras fazem dele um homem - antes de qualquer suspeita - ligado à palavra. Elogiados por professores de literatura e teatrólogos, seus livros confirmam a vocação literária, como está evidente no romance “Budapeste”, nos contos de “Essa Gente” e na dramaturgia da “Roda Viva”.


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Chico Buarque: obra consagrada. Foto: Arquivo Nacional

Mesmo que tenha se consagrado como letrista daquela “cachaça de graça que a gente tem que engolir” e autor dos discos “Construção”, “Meus Caros Amigos”, “Os Saltimbancos”, “Ópera do Malandro” e “Paratodos”, Chico - pasmem - dispensa música. “Ouço muito pouco. Às vezes paro pra ouvir um disco que eu recebo, coisa assim. Mas aquela música que fica lá no fundo, acho isso odioso. Se você está conversando aqui e tem uma música tocando, fica aquele barulho... é desagradável”, revelou, ao responder Ricardo Leite, na “Bundas”.

Hoje, continua relevante, basta ver a recepção da turnê “Que Tal um Samba”, com a qual excursionou pelo Brasil entre 2022 e 2023, e o disco dela captado no Rio de Janeiro: Francisco Buarque de Hollanda é para todos. “O Que Não Tem Censura, Nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística Durante a Ditadura” é valioso.

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