Cultura

Disco emoldura obra de Ivan Lins em quadro jazzístico

Redação DM

Publicado em 24 de setembro de 2023 às 23:25 | Atualizado há 5 meses

Numa tarde quente, Ivan Lins aparece no Google Meet e, bem-humorado, diz que foi difícil entrar na sala virtual. Está despojado: camisa azul, óculos de grau arredondado, cabelo grisalho bem cortado. Sorri ao lembrar de Miles Davis. E fala, entusiasmado, dos tempos em que o baixista goiano Bororó Felipe excursionou consigo pelos Estados Unidos e Europa. Tanto Ivan quanto o repórter estão com o tempo apertado para realizarem a entrevista.


Ivan se tornou um dos compositores brasileiros mais aclamados lá fora. Segue tradição fortalecida por Tom Jobim, maestro das harmonias minimalistas sofisticadíssimas da bossa nova, mas iniciada, como indica a história, pelo saxofonista Pixinguinha, que deixou os ouvidos franceses embevecidos durante estadia em Paris, nos anos 1920. Além dos três mestres, a lista inclui Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque.


Compositor de “Madalena”, sucesso na voz de Elis Regina, Ivan Guimarães Lins lança pela Resonance Records o disco “My Heart Speaks”, já disponível nas plataformas de streaming. O músico toca joias raras de seu repertório, como a música “Congada Blues”, composição que fez para o trompetista Miles Davis. Como a lenda do jazz veio a morrer e não chegou a gravá-la, Ivan a enviou para a Resonance junto com outras trinta e poucas sugestões. 


“Congada Blues” é o ponto alto do disco. Blueseia o batuque brasileiro, como se fizesse uma arqueologia dos sons da diáspora. Difícil manter as pernas quietas. Ao ouvir o compasso tocado pelo baterista Mauricio Zottarelli, dá vontade de sair por aí remexendo os quadris. O guitarrista uruguaio Leo Amoedo, na sua semiacústica, brilha com seus dedos escorregando pelo braço do instrumento. Tudo isso costurado pelo groove suingado arquitetado pelo baixista cubano Carlitos Del Puerto nas linhas de latinidade. Um delicioso ritmo.

 

  


“Me inspirei nas Congadas para dar ritmo diferente. E funcionou”, revela Ivan, durante bate-papo com o Diário da Manhã, feito na quinta-feira, 21. Miles – para quem o instrumentista carioca fizera a música – chegou a lhe dar, com a indefectível voz rouca e cavernosa, o seguinte conselho: “man, you’re a fucking songwriter”, algo como “cara, você é um compositor do caralho”. De fato, o trompetista estava com o faro em dia. 


Nas 11 faixas, “My Heart Speaks” emoldura a exuberância musical de Ivan com uma roupagem jazzística. O disco começa com uma parceria dele e Chico Buarque, “Renata Maria”, que possui uma atmosfera bossa novista, sobretudo no fraseado que Amoedo toca ao violão. Essa música, aliás, faz peles mais sensíveis à beleza da arte se arrepiarem: nada poderia ser mais perfeito que a orquestra de Tbilisi. Um dos pontos altos da obra. 


O outro momento em que a alma humana se lava nas águas jazzísticas acontece na segunda música. E com um adereço que faz toda diferença: a voz de Dianne Reeves, já conhecida nos Estados Unidos, onde é considerada a herdeira direta de Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, mas ainda desconhecida do grande público brasileiro. Ela tem um canto dilacerante, tão cortante quanto uma lâmina de barbear, sobretudo nos agudos que bem se casam à música.


Ivan confessa ao DM que Dianne chegou ao projeto após sugestão de George Klabin, entusiasta de jazz, fã maior de Ivan Lins e dono da Resonance. “Ele achou que seria perfeito tê-la no disco e eu deixei por conta dele. Em comum acordo, montou uma proposta, com três convidados. E são três vozes femininas”, diz o músico brasileiro, referindo-se a Tawanda e Jane Monheit – esta última, inclusive, interpreta uma bela homenagem ao Rio de Janeiro que pede para ser ouvida na companhia de um uísque bourbon e um maço de cigarro Dunhill. 


“Rio (Rio de Maio)” fez o repórter evocar os versos de Fernando Pessoa: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Essa parceria de Ivan com Celso Viáfora só confirma o já esperado, mas ainda não assimilado por inteiro – o fato de o brasileiro ser gigante da MPB. Mas ele desenterra outras obras-primas, como “Corpos”, letra de Vitor Martins, e “Não Há Porque”, feita junto com Ronaldo Monteiro de Souza. A primeira exibe um pianinho, rapaz do céu, safadérrimo e cristalino! Já a segunda se destaca pela guitarra e pelo baixo, bem tocados. 

 


		Disco emoldura obra de Ivan Lins em quadro jazzístico

Capa do disco ‘My Heart Speaks’.

Foto: Divulgação

  


Do início ao fim, tudo funciona em “My Heart Speaks”: os solos de guitarra, a presença de metais, o suingue no dueto bateria/baixo, o piano virtuoso de Josh Nelson. Quando o jazz começa a ser falado com sotaque brasileiro, em “Easy Going”, Ivan adiciona um tempo de suingue, latin jazz. A ternura está viva em “Nada sem Você”, balada de densidade, assinada por Ivan com Ivano Fossati e Célso Viáfora. E essa atmosfera continua na sussurante “Missing Miles”, que tem solos admiráveis de trompete. A música irá salvar a humanidade. 


Segundo Ivan Lins, o nível da música brasileira no exterior está bastante elevado. “É como no futebol: não há mais bobo. Nossa música é estudada, tem apreço do público. Mas os ritmistas ainda não são como os nossos. Chegam perto, porém”, afirma o músico, que declara amor a Goiás (“me inspirei no jeito goiano”) e até homenageou a forma de falar da antiga Vila Boa numa de suas canções. O músico presenciou a era dos festivais goianos, além de ter amizade com João Caetano e Tavinho Daher, letrista falecido em julho de 2020.


Vencedor de quatro prêmios Grammy Latino, Ivan gravou cerca de cinquenta álbuns desde 1970, que contém sucessos como “Madalena” e “Começar de Novo”. Também estourou cantando em inglês: “Love Dance”, escrita em parceria com seu arranjador de longa data, Gilson Peranzzetta, e o letrista Paul Williams, tem status de clássico nos EUA. Dentre os seus intérpretes, contam-se Sarah Vaughan, Barbra Streisand e Quincy Jones. No fim da entrevista, Ivan Lins agradece o repórter. “Adorei as perguntas.” 


My Heart Speaks


Ivan Lins


Faixas: 11


Jazz


Resonance Records


Disponível no streaming


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