Documentário reúne imagens raras de gravação histórica
Redação DM
Publicado em 20 de setembro de 2023 às 00:39 | Atualizado há 5 meses
Elis e Tom gravaram um dos melhores discos da música brasileira. Da música brasileira, e do mundo ocidental, sem exagero. Arranjos requintados, músicos excelentes. Para Tom Jobim, menos significava mais. Ensinava que o ofício da composição exige mais borracha do que lápis. Já Elis Regina explodia notas agudas no microfone. Cantar deveria arder como uma pimenta que desce pela garganta rasgando o esôfago. Dois gênios absolutos.
Tom adentrou os anos 70 achando que a bossa nova tinha se tornado coisa de velho. Um museu de grandes novidades, na visão do músico. Dizia que ninguém queria escutar o que ele, Vinícius de Moraes e João Gilberto haviam criado no fim dos anos 50, quando os arranjos do maestro, as letras do poeta e o ritmo do violonista modernizaram a música brasileira. Os caras lançaram as bases para Caetano, Gil e Chico. Mas essa é outra história.
O clima andava tenso em Los Angeles. Elis chegou a fazer as malas para retornar ao Brasil, furiosa que estava com os rumos do elepê. Isso obrigou Roberto Menescal a apanhar um avião no Rio de Janeiro e, horas depois, chegar aos Estados Unidos, com o objetivo de acalmar os ânimos. “Quase se transformou no maior disco não feito da história”, diz João Marcelo Bôscoli, em depoimento que está no doc “Elis & Tom – Só Tinha de Ser Com Você”.
Essa história já foi explorada em biografias e programas televisivos. Só que o documentário, previsto para entrar em cartaz nos cinemas de cem cidades brasileiras nesta quinta-feira, 21, leva vantagem ao contar com a força das imagens para reconstruir os bastidores do disco “Elis & Tom”. Os registros foram feitos no estúdio da MGM por Tom Tob Azulay e, para o projeto, foram restaurados em 4k: o material foi ao ar pela TV Bandeirantes em especial de 74, com reprise em 92, numa iniciativa que comemorava os 25 anos da emissora paulista.
Elis e Tom: cantora por pouco não abandonou estúdio e retornou ao Brasil. Foto: Divulgação
Entrelaçados às raridades de estúdio, o público observa depoimentos de personalidades gabaritadas, como Cesar Camargo Mariano, André Midani, Nelson Motta (roteirista do filme), Wayne Shorter, Roberto Menescal, Hélio Delmiro e Paulo Braga. Aparecem ainda os filhos Beth Jobim, 16 anos à época em que o disco foi gravado, e João Marcelo Bôscoli, filho de Elis, que chegava perto dos 4 anos. São momentos nos quais a emoção se torna a tônica desse acorde cinematográfico. Lembra “Get Back”, filme sobre os Beatles, de Peter Jackson.
Por Elis não lhe apetecer, Tom poderia imaginar a incumbência que teria: domar um furacão artístico. De personalidade explosiva e canto poderoso. Como se não bastasse tudo isso, ela sugeriu ao trabalho o pianista e companheiro Cesar Camargo Mariano, grande músico – sem dúvida. A princípio, Tom ficou receoso. Depois, ao pensar melhor, viu que se tratou de escolha certeira, uma vez que Cesar respeitou os acordes de sonoridade minimalista, introduziu a guitarra e o piano Fender Rhodes. Deu vida a “Elis & Tom”.
Só que nada foi tão simples assim. Cesar se recorda, bem humorado, da “facada no peito” que levou ao perceber como Tom lhe esnobou, referindo-se ao sabor pianístico com o qual era acostumado a temperar canções usando “pobres notinhas brasileiras”. Mas o maestro e esposo de Elis acompanhava a black music, o sambalanço e o rock. O guitarrista Hélio Delmiro, ciente desse caldeirão musical, define o disco como “perfeito”. Tem lá suas razões.
Cesar Camargo e Tom Jobim: mestres do arranjos em clima tenso. Foto: Divulgação
A primeira delas, por exemplo, diz respeito ao tom intimista imprimido por Elis em “Águas de Março”. Ela recria acentuações rítmicas e faz contornos melódicos capazes de impactar qualquer ouvido sensível à música. Tom inseriu acordes num campo harmônico delicado, com escalas arrepiantes e singelas – apropriadas para o gogó da cantora. À época, vale contextualizar, a intérprete de luxo estava com a imagem arranhada, pois cantou na Olimpíada do Exército e foi considerada persona non grata por Henfil no “Pasquim”.
Dois erros precisam ser apontados em “Elis & Tom – Só Tinha de Ser Com Você”: a falha do diretor Roberto de Oliveira (que assina o roteiro junto de Nelson Motta) em explorar o aspecto político, tão essencial para se contextualizar os fatos, como show de Elis Regina para os milicos. Afinal, foi porque declarou, na Europa, que gorilas governavam o Brasil. Outra bola fora foi Roberto mostrar a insinuação de André Midani de que Elis teria cometido suicídio. Tese já desmentida pelo biógrafo Julio Maria em “Elis Regina – Nada Será Como Antes”. Antes de qualquer suspeita, contudo, ver Elis e Tom juntos é acreditar que o Brasil tem jeito.