Elen Lara: resgatando a tradição das grandes cantoras
Redação DM
Publicado em 31 de agosto de 2016 às 03:01 | Atualizado há 9 anosElen Lara não é apenas uma grande cantora. De fato, ela tem uma voz bonita, uma técnica refinadíssima, muito charme e muita bossa. Uma intérprete, como as grandes divas do passado: Elis Regina, Dalva de Oliveira, Dóris Monteiro, Elza Soares, Maria Betânia, tantas! Cantoras que não berram, não gritam, mas colocam a voz com um apurado sentido de ritmo e afinação. O Brasil praticamente já não tem mais grandes cantoras, grandes intérpretes. Tem aí umas croners de trio elétrico, umas fanqueiras apelativas e umas bobinhas que acham que cantar bem é imitar cantora americana de gospel.
Mas se Elen fosse apenas uma excelente cantora, ainda haveria esperança para as outras. Ocorre que ela é também pianista exímia, que toca com muito balanço e desenvolve arranjos surpreendentes para as canções que interpreta. Ouçamos Frutos da Terra, na voz e no piano de Elen. É vibrantre, sublime, dá de mil a zero na interpretação de Genésio Tocantins, autor da melodia. Noites Goianas, imortalizada pela grande Celi Camargo, ganha na voz e no piano de Elen uma outra dimensão. A intenção fadista está lá, a goianidade está lá, mas qualquer coisa de contemporâneo atualiza esta canção que é, por assim dizer, o hino da goianidade.
Ela é sobretudo uma menestrel. Nossa Carloe King, nossa Carly Simon, cantoras e compositoras que se acompanham ao piano, algo inédito no Brasil. Esta moça que sozinha, apenas com seu teclado, ou um piano, onde houver, faz o baile e anima a festa, é também uma extraordinária compositora, que escreve letra e música, faz arranjos, produz discos e rege corais. Sim, não há esperança para as outras. Elen esgotou as possibilidades, preencheu todos os espaços. Não tem para ninguém.
Com todo este talento, tarimba e graça, esta moça, que nasceu em Goiânia há 45 anos, casada com o tenor Dámom Faria, com quem se apresenta amiúde, tem tudo e muito mais para ser uma estrela da MPB, uma celebridade nacional e até internacional, um nome portentoso do mainstream. Mas ela está muito longe do estrelato. Elen, é claro, vive profissionalmente da música, cavando seu próprio espaço. Mas, num certo sentido, ainda é 100% underground. Sua música é privilégio dos poucos que tiveram oportunidade de vê-la e ouvi-la ao vivo em algum evento corporativo.
O fato de não ser tocada nas rádios, de nunca ter aparecido do Faustão, de estar batalhando um espaço no Boldrin (Sr. Brasil), prova apenas que qualidade não é, necessariamente, sucesso comercial. No Brasil, o sucesso comercial é contingência dos que estão dipostos a vender a alma ao demônio midiático, a fazer concessões estéticas, a se pintar de palhaço e se submeter à tirania de produtores jabaculeiros. Fabrica-se o sucesso como se lança um novo refrigerante, um novo celular, um novo carro. Muita propaganda, muita exposição, vida particular devassada e comentada em revistas de fofoca. Por meio da saturação da mensagem, a mídia impõe o mau gosto como o gosto por excelência. Não apresentando alternativas, ou abafando as que há, a mídia faz da ilusão realidade.
O gosto musical estragado do brasileiro dos tempos atuais é produto desta sórdida manipulação que nos impinge sertanejos espúrios, funqueiros rídiculos, pagodeiros sem conteúdo, arrocha obsceno e outros lixos sonoros. Neste contexto, a Música Popular Brasileira está definitivamente morta, apesar de vivíssima na Europa, onde é muito apreciada. Artistas como Elen Lara resistem aos modismos e tentam ressuscitar a boa música popular.
Formação
Elen iniciou-se no piano aos seis anos de idade. Teve formação erudita. Hoje, é mestre em Música pela Universidade Federal de Goiás. É muito mais do que uma música: é uma musicista. Elen tem seus ídolos: Beethoven, Tchaikoviscki e Schumman. Entre os cantores líricos ouve com devoção Maria Callas, Plácido Domingos, Cacilda Bartolier e Monserat Cabalier. No dia que veio à redação do Diário da Manhã, a nosso convite, passou toda a manhã ouvindo Nana Caymmi.
Quem faz música de qualidade, ouve música de qualidade. Além de suas próprias canções, Elen canta, em suas apresentações, o que há de melhor da MPB. Mas sobra também espaço, e muito espaço, para o regional goiano. Ela encanta sua plateia com os fados de Celi Camargo e as cantigas brejeiras dos compositores goianos. Em seu próximo disco vai lançar Pequititinha, de Hamilton Carneiro, “uma canção muito brejeira”, ela diz.
Elen se apresenta em eventos corporativos, basicamente, e eventualmente em teatros. Participa de festivais, tendo sido pré-classificada para o 46 Fnac de Minas Gerais, com letra e música de sua autoria. Não gosta de barzinhos. É comum apresentando-se em templos evangélicos, já que, como afirma, “nasceu presbiteriana”. E o que ela toca para os irmãos de fé? Música Popular Brasileira de qualidade. Com isso, vai educando, vai levando refinamento musical a uma comunidade que não ouvia com bons ouvidos a MPB.
Mesmo sendo religiosa, ela também compõe para Jesus, é claro. Um de seus discos, Simples gestos, é todo devocional, cantos de louvor a Deus. Seu outro disco, Mulher, também tem inspiração religiosa. Mas como indica o título, canta a condição feminina na saga de personagens bíblicas. As mulheres do Novo Testamento, apesar do machismo das igrejas cristãs, deram testemunho de superação e de afirmação pessoal. Madalena é o grande símbolo da mulher que foi marginalizada porque escolheu ser livre, dona de seu próprio corpo. Quiseram apedrejá-la não por ser prostituta, profissão tolerada e até incentivada entre os judeus, mas por ser uma mulher livre e insubmissa. A samaritana da parábola simboliza a tolerância e a abertura para o outro, uma atitude que transcende nacionalidade, credos e até sexo. Coisas de que um homem, em geral, quase não é capaz.
Em geral ela se apresenta sozinha, ou com os cantores Dámom Faria e Hudson Ayres. Se for um evento de porte, ela tem uma turma da pesada que lhe dá suporte instrumental. Uma banda que tem Jarder Steter na bateria, Diego Amaral na percursão, Hélio Júnior Batista no contrabaixo, e o tecladista e acordeonista Chico Chagas, além do guitarrista Olemir Cândido. Além desses, outros instrumentistas de peso participam de suas gravações. Ela produz e promove seus próprios discos, sendo também sua própria empresária.
Uma artista honesta, que não se sumete às imposições da mídia, mas que busca a excelência em tudo o que faz. Que não toca aquilo que o vulgo quer ouvir, mas que ensina o vulgo a gostar de coisas invulgares.