Cultura

Em Cannes se decide o futuro do mundo

Diário da Manhã

Publicado em 14 de julho de 2021 às 00:30 | Atualizado há 4 meses


Wilson da Silva
Especial para o DM

Ao negociar com os franceses os empréstimos do plano Marshal, que reconstruiu a Europa após a II Guerra, os norte-americanos exigiram que 60% do tempo nas telas dos cinemas fossem reservados à produção dos EUA. Justificaram que «o cinema era o instrumento mais importante para vencer o comunismo».

Como dizem os japoneses, em um filme o qual não me lembro o nome, « os negócios são…a guerra », depois da guerra.

Se faltava ainda um decreto, agora declarou o norte-americano Spike Lee, presidente do júri deste ano : « Cannes é muito mais importante do que o Oscar ». E alguém ainda duvidava ?


Os muçulmanos vão à Meca, os católicos vão à Roma e todos vão a Cannes. Da mais badalada estrela, que se hospeda no hotel Martinez, e somente circula de limousine, até as centenas de pessoas que disputam um pedaço de calçada em algumas partes da cidade, para instalar seus sacos de dormir e passar dias ao relento.

Se faltava ainda um decreto, agora declarou o norte-americano Spike Lee, presidente do júri deste ano : « Cannes é muito mais importante do que o Oscar ». E alguém ainda duvidava?

O festival francês nasceu como resistência à manipulação de fascistas e nazistas sobre o pioneiro Festival de Veneza, na Itália. Seria inaugurado em 1939 mas, com a invasão da Polônia naquele ano, teve a sua gestação esticada em mais seis anos, até o fim da Segunda Guerra, quando então teve a primeira edição. Enfrentou as crises da Guerra Fria e a agitação de maio de 1968, quando foi paralisado. E no ano passado não aconteceu por causa
de uma certa pandemia. Apenas o fato de ser realizado nesse 2021, debaixo do sol inclemente de julho e não no temperado mês de maio, já seria motivo ao menos de consolo, quando não de comemoração.

Em um mundo cada vez mais fragmentado, o Festival de Cannes continua a ser a referência, o liquidificador, de onde saem os filmes que alimentam o noticiário, atraem pessoas aos cinemas, impulsionam carreiras profissionais, das grandes salas às pequenas telas da TV e plataformas diversas.

As duas semanas em Cannes não são apenas o Festival, mas outros festivais
paralelos e dezenas de eventos, que incluem, por exemplo, conferências e debates sobre a guerra entre o antigo mundo das salas de cinema e o novo mundo de Amazon e Netflix, em busca de uma coexistência pacífica que permita à sétima arte evoluir em uma paz sempre tensa. Qualquer semelhança com a Guerra Fria, é mera coincidência.

A FESTA, O SEGREDO

Mas porque Cannes se impôs como o mais importante festival de cinema do mundo? O editor da revista econômica francesa Les Echos, Henri Gibier, resume que, se Cannes ainda é o « top », deve-se ao fato de que o evento continua a ser um grande momento de festa.
Criaram-se rituais, símbolos e detalhes que fazem o resultado final. A subida das escadas pelas estrelas, as limousines, as entrevistas nos palácios com o mar ao fundo, as festas nas praias ou nos iates, a massa alegre misturando cinéfilos intelectuais e curiosos por celebridades, enfim, um folclore criado e alimentado ao longo de décadas.

« Nada é supérfluo, tudo é necessário à magia de Cannes. Hoje desafiado pelas plataformas e outras formas de diversão, as telas de cinema devem guardar essa lição, que vale pelos conteúdos e experiências vividas nas salas: a saúde do negócio depende do senso da festa », conclui o experiente jornalista.
Depois de ser recompensado no Festival, um sul-coreano conseguiu também ganhar o Oscar. E graças ao Festival, o enfant terrible Spike Lee, então independente, se projetou no começo da carreira, e agora volta triunfal, como presidente do júri, onde aproveita o palanque para continuar a saga dos panteras negras: não perde oportunidade para atrair a atenção do
mundo, denunciando o massacre racista nos EUA. E, como time is money, ele fatura alguns milhares de dólares como garoto propaganda das canetas Montbianc, em um gigantesco painel exposto na avenida principal da cidade.



Time is money: Spike Lee, o garoto propaganda das canetas Montbianc,

Acontece de tudo na cidade do cinema. Neste ano, por exemplo, durante um debate, houve o duelo entre o dono de uma rede de salas de cinema no interior da França, em busca da sobrevivência, e o todo-poderoso diretor da Amazon na Europa, muito bem instalado nos resultados, multiplicados pela pandemia. Aguardem os próximos capítulos, para saber o resultado do duelo.

E a cidade bem se prepara para receber convidados do evento que a fez crescer e se tornar uma das mais ricas da Europa.


Glamour e negócios, diversidade e protestos, aproveitam janelas entre céu e mar, para se expressar ao mundo. E a cidade bem se prepara para receber convidados do evento que a fez crescer e se tornar uma das mais ricas da Europa. Dos ônibus que circulam, até uma secular igreja católica, instalada no local onde Napoleão fez uma pausa, quando voltava do exílio para tentar recuperar o poder, cada espaço vale para lembrar que o cinema, além de
festa, é um setor econômico poderoso. Assim como o famoso conquistador francês, os destinos do mundo (do cinema mas um pouco mais) ainda passam por Cannes.


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