Cultura

Escolha um poema

Redação DM

Publicado em 7 de outubro de 2015 às 01:37 | Atualizado há 8 meses

Nesta edição da coluna Berro optamos por um olhar diferente. Ao contrário de apresentar algum escritor novo ou algum texto contemporâneo, ficou acordado que deveríamos olhar para trás. Convidamos alguns poetas, jornalistas e trabalhadores em geral para dizer qual teria sido o versinho que valsou no ouvido e qual o nome do autor que realizou tal peripécia.

Entre os que citaram seus poemas de peito, selecionamos alguns destes que estão logo abaixo. Mas antes, para abrir as portas, também gostaria de compartilhar um dos textos que me tira o fôlego. Carlos Drummond de Andrade com o poema Elegia 1938.

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan

Renato Negrão é poeta da cidade de Belo Horizonte. Lançou, recentemente o livro “Vicente Viciado” e desde então continua andando nesses caminhos. Ele diz que entre os poemas que leu recentemente o “Balanço”, de Antônio Cícero, foi o mais forte.

Balanço – Antônio Cicero

A infância não foi uma manhã de sol:

demorou vários séculos; e era pífia,

em geral, a companhia. Foi melhor,

em parte, a adolescência, pela delícia

do pressentimento da felicidade

na malícia, na molícia, na poesia,

no orgasmo; e pelos livros e amizades.

Um dia, apaixonado, encarei a minha

morte: e eis que ela não sustentou o olhar

e se esvaiu. Desde então é a morte alheia

que me abate. Tarde aprendi a gozar

a juventude, e já me ronda a suspeita

de que jamais serei plenamente adulto:

antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos

os deuses façam felizes e maduros

Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.

Jorge Filholini é o criador e editor-chefe do site Livre Opinião Ideias em Debate. Também é um dos produtores do festival literário Balada Literária. Recentemente esteve em viagem pelas capitais do Brasil (Palmas, Goiânia, Rio Branco e etc) ao lado do escritor Marcelino Freire no projeto Quebras. Ele afirma que o poema que mais afetou seus dias recentemente é Desmolida, de Vinicius de Andrade.

teus cabelos de incêndio

apenas teus olhos de mar

compreendem sem desalento

teus desejos secretos

as palavras mais sinceras

janelas para uma terra de ninguém

senti o ar frio dos teus pulmões

desejei teu rosto rosado

nas conversas em idioma desconhecido

hoje não existe mais remédio

a distância fez-nos formiguinhas

em baforentas ruas sem saída

mas a cada lembrança que cintila

numa passagem, num celular

ou nas tuas capas de revista

o verso vira choramingo

– ressentimento –

desabafo feio e sem rima

a triste certeza

que tenho agora nesta calma

é a saudade e o adeus

pois teus cabelos de incêndio

apenas teus olhos de mar

compreendem sem desalento

Clennon Ferreira é jornalista. É o criador da Agência Cajá de assessoria que trabalha com eventos culturais. Entre os poemas que gosta o Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos, é  dos mais válidos.

Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de sua última quimera.

Somente a Ingratidão – esta pantera –

Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!

O homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos


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