Home / Cultura

Literatura

Escritora satiriza política brasileira em ‘O Presidente Pornô’

Obra segue tradição antropofágica consagrada pelo modernismo de Oswald de Andrade

Bruna Kalil Othero, nova voz da cena literária: retrato sem retoques de um país Bruna Kalil Othero, nova voz da cena literária: retrato sem retoques de um país

O presidente da República está mesmo de sacanagem. Sujeitinho sem vergonha du caramba: saboreia suas taras sexuais, com homens e mulheres, mas se rotula liberal na economia e, adivinhe só, se diz conservador nos costumes. Batata: o cara é branco, autocentrado e dono de patológica predileção por quase tudo que envolve o universo militar. Bráulio Garrazazuis Bastianelli se elegeu para o cargo mais alto do Plazil pelo fato de ser, digamos, piada pronta.

Esse é o ponto de partida para o romance satírico “O Presidente Pornô” (R$ 74,90), título assinado pela escritora mineira Bruna Kalil Othero, de 27 anos. A obra acaba de sair pela Companhia das Letras. Seu enredo, segundo a autora, aborda “todos os acontecimentos políticos (...) que ocorreram, ocorrem e ocorrerão na história republicana brasileira”.

Já nas primeiras páginas o leitor encontra um pedido de desculpas feito pela autora. “Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Ou o que fizer vossas genitálias tremerem. A ficção é o que existe lá fora, e aí dentro”, orienta Bruna, antes da obra propriamente dita. Só há uma explicação possível: Bráulio “era um cuzão”, como somos avisados na primeira frase. Vai ver que, graças a essa virtude imperfeita, o sujeito elegeu-se chefe maior da nação.

Era uma vez a história: havia um povo feliz, esperto, livre. Plantavam, comiam, viviam o prazer. Um dia, sem mais nem menos, a terra foi invadida pelos europeus. Uma náusea tomou conta de todos e o ar, antes gostoso, tornou-se agora irrespirável. As pessoas passaram a sentir escatológica vontade de liberar o enjoo sufocante. Nascia o Plazil, “nosso amado país - braço oficial dos distúrbios proctogastrointestinais mais chiques do planeta”.

Voz original na literatura contemporânea, Bruna Kalil põe no ombro das palavras a tradição antropofágica consagrada pelo modernismo brasileiro. Mais especificamente, neste caso, o irônico Oswald de Andrade. Aliás, capítulo a capítulo, “O Presidente Pornô” seria capaz de pregar no mestre do deboche um sorriso daqueles de canto de boca. Oswald - arrisco a dizer - não resistiria a tal sabor literário. Porque, ó, a obra leva qualquer um às gargalhadas.

Outro nome essencial à literatura de Bruna é uma genuína pornógrafa brasileira. Uma safadona, vamos colocar assim, só que de impreterível relevância. Por meio da obscena senhora H., personagem de “Contos d´escárnio”, Hilda Hilst sugere que inventemos uma pornocracia. “Exaltar a terra dos pornógrafos, dos pulhas, dos velhacos, dos vis. Não posso. Literatura pra mim é paixão. Verdade. Conhecimento. Matou-se logo depois”, avisa Hilda.


		Escritora satiriza política brasileira em ‘O Presidente Pornô’
Bruna se inspira no funk, na tradição modernista e em Hilda Hilst. Foto: Divulgação

Para a escritora Micheliny Verunschk, Bruna retoma a tradição satírica para falar de um país não muito longe daqui, no qual o farsesco, o grosseiro, o risível têm lugar destacado no púlpito. “Nesse país, desgovernado por um sujeito pornográfico, misógino, racista, o que mete medo é o Carnaval. Haja Plazil! Um retrato sem retoques de um país em que a República, desavisada, perdeu a calcinha. E, sim, Gregório de Matos estaria orgulhoso.”

“O Presidente Pornô” mescla linguagens, ao trazer trechos narrados em versos, prosa ou teatro, o que dá à obra um tom de originalidade assombroso. As influências vão de Machado de Assis a Carolina Maria de Jesus, mas ainda há o funk cantado nas letras da Mulher Pepita. Bruna Kalil Othero, afinal de contas, doutora-se na Universidade de Indiana, nos EUA, e estuda como a poesia do século 18, a escritora Pagu e a cantora Anitta pensam o Brasil. Nada mais lógico do que tê-las como pilares estéticos de um romance, não é?

Alguém atento ao noticiário estabelecerá paralelos entre o presidente do Plazil com Bolsonaro. Não é das tarefas mais difíceis, convenhamos: o sujeito é pitoresco, de extremo mal-gosto, uma caricatura dos extremistas à direita. Para criar Bráulio, Bruna investigou todos os presidentes brasileiros desde Deodoro da Fonseca, que governou no século 19. O protagonista é “absurdamente velho”, “intensamente branco” e “irreversivelmente calvo”.

Mas também é poeta, como José Sarney e Michel Temer. Acredita que a crise econômica não passa de uma “marolinha”, fazendo eco a uma fala de Luiz Inácio Lula da Silva. Até prometeu, uma vez no poder, que iria dar um “ippon na inflação”, a exemplo de Fernando Collor de Mello. Prefere cheiro de cavalo ao das pessoas, tipo João Batista Figueiredo. A única que não foi zoada por Bruna foi Dilma Rousseff, alvo de impeachment, em 2016.

Se a história reconstrói o passado por meio de eventos oficiais, ambientados em salões públicos e vividos por pessoas vestidas, o que ocorre entre quatro paredes requer habilidade descritiva. A autora exibe bom humor e criatividade, num retrato hilário da humanidade e suas taras, desejos e fantasias. Tudo contado como se fosse peça de teatro, no qual o Imperador e a Imperatriz assistem a uma apresentação em três atos.

No primeiro, o leitor acompanha a corrida eleitoral, com direito a ver Braúlio diante do espelho lendo discurso pelado. Depois, desenrola-se a história pessoal do personagem e, por fim, os desdobramentos do governo eleito à ditadura que se autoproclama. “Bruna Kalil faz brilhante alegoria da política brasileira. ‘O Presidente Pornô’ é uma arqueologia sombria e sarcástica de como chegamos ao fundo do poço”, afirma o escritor Jeferson Tenório.

O Presidente Pornô

Autor: Bruna Kalil Othero

Gênero: romance

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 254

Preço: R$ 74,90

Quem é a autora: Nascida em Belo Horizonte (MG), Bruna publicou a obra de poesia “Oswald Pede a Tarsila que Lave Suas Cuecas", premiado pelo Ministério da Cultura, em 2019. Antes, tinha lançado “Anticorpo” (2017), “Poétiquase” (2015) e do livro-objeto de ficção “Carne” (2019). Organizou ainda “A Porca Revolucionária: Ensaios Literários Sobre a Obra de Hilda Hilst” (2018) e “Poéticas do Devir-Mulher: Ensaios Sobre Escritoras Brasileiras”.


		Escritora satiriza política brasileira em ‘O Presidente Pornô’
Foto: Cia das Letras

Leia também:

  

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias