Cultura

Estética pré-ditadura de João Botelho

Diário da Manhã

Publicado em 28 de junho de 2021 às 14:58 | Atualizado há 4 anos

O poeta Fernando Pessoa faz do heterônimo Ricardo Reis um poeta e médico que não exercia o ofício do jaleco branco. Latinista, semi-helenista e monárquico convicto que se exilou no Brasil em 1919, agora o personagem chega às telas grandes pelo cineasta português João Botelho ao adaptar a obra “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago, cuja estreia no Brasil foi na Mostra de Ouro Preto deste ano – até hoje.

Em um filme poético, mas fantasmagórico e onírico, Botelho conseguiu transportar para o cinema um romance em que Saramago transforma em protagonista aquele que nunca tinha tido a data de sua morte indicada por Pessoa, ao fazê-lo regressar à Portugal no final do ano de 1935 e instalá-lo num hotel na capital portuguesa. Não demorou a sentir-se abalado pelos ecos do fascismo de Mussolini, do nazismo de Hitler, da Guerra Civil Espanhola e do Estado Novo de António Salazar.

Botelho, diretor que nos últimos anos arriscou-se em levar para o cinema obras literárias como “Os Marias”, “A Peregrinação” ou “O Livro do Desassossego”, criou uma atmosfera singular que condiz com o texto de Saramago. Há uma fotografia em preto e branco, que, em certos momentos, remete a Carl Dreyer e seus planos fechados, chuvas e nevoeiros. O protagonista, muito bem interpretado pelo ator brasileiro Chico Diaz, divide-se entre o desejo carnal, com Lídia, e sonhador, com Marcenda.

Botelho, diretor que nos últimos anos arriscou-se em levar para o cinema obras literárias como “Os Marias”, “A Peregrinação” ou “O Livro do Desassossego”, criou uma atmosfera singular que condiz com o texto de Saramago. Há uma fotografia em preto e branco, que, em certos momentos, remete a Carl Dreyer e seus planos fechados, chuvas e nevoeiros. O protagonista, muito bem interpretado pelo ator brasileiro Chico Diaz, divide-se entre o desejo carnal, com Lídia, e sonhador, com Marcenda.

Não à toa, o filme foi rodado numa fotografia que nos leva a refletir sobre o mundo pré-Segunda Guerra Mundial e os evidentes paralelos entre aqueles dias com os atuais: se lá o mundo convivia com a ascensão de um regime a partir do qual institucionalizou-se a mediocridade, a repressão, a censura, hoje assistimos perigosamente a extrema-direita encorajar-se a sair do armário para berrar seus impropérios sociais e políticos. Por isso, Botelho acertou na estética do filme.

Diaz, ator respeitável, com sólida carreira construída no cinema brasileiro, razão pela qual é o homenageado na edição deste ano do Cine OP, expressa-se com um sotaque impressionante de quem vivera 16 anos no Brasil. Se a jovem da provinciana foi ou não galanteada por um sujeito sem atributos, é outros quinhentos: tanto Botelho quanto Chico Diaz constroem um personagem interessante, ora meio triste ou solitário, porém que consegue colocar-se no centro da narrativa de uma maneira interessante.

Mas o melhor atributo do filme é justamente ter um simbolismo antafascista numa época em que o populismo de direita (ou extrema-direita, melhor dizendo) regressa sem remoço: é preciso olhar, talvez muito mais do que olhar, mas combater os discursos e práticas autoritárias de viúvas do salazarismo. Nesse sentido, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” se mostra um filme que precisa ser visto e debatido.

Botelho nos oferece os instrumentos, ainda que artísticos, porém irretocáveis: a fotografia em preto e branco, para dar um ar carregado, de tristeza e temor coletivo; o personagem principal que se torna alvo da repressão por simplesmente não ter um trabalho como quer a família tradicional e um sujeito que vive sem família, sem emprego, nem nada daquilo que alimenta o imaginário ideal dos reacionários.

Por isso e muito mais, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” é um filme que emociona e impressiona, mas também mostra que a História nem sempre é original ao ponto de nos poupar dos terrores fascistas. A única diferença, hoje, é que eles chegam ao sistema político a partir de uma farsa: Bolsonaro, Trump, Salazar, Hitler, Mussolini… nada mais são que figuras idênticas, iguais, semelhantes, com os mesmos ‘sonhos’.

Perseguido pela batota reacionária, o cinema cumpre a missão social e artística de retratar o irretratável. No entanto, quem se importa? É preciso aniquilar o fascismo. (Marcus Vinícius Beck)

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