Cultura

Gil faz sertão chegar à praia em ‘Tempo Rei’

Redação Diário da Manhã

Publicado em 12 de junho de 2025 às 13:09 | Atualizado há 21 horas

Gil emocionou público ao revisitar canções que marcaram sua trajetória- Fotos: Pridia/ Divulgação
Gil emocionou público ao revisitar canções que marcaram sua trajetória- Fotos: Pridia/ Divulgação

Gilberto Gil repassa trajetória musical com arco narrativo cronológico, durante show no Mané Garrincha, em Brasília. Entre forró e samba, reggae e rock, o tropicalista celebrou a brasilidade. “Viva Santo Antônio, São João e São Pedro”, disse

Marcus Vinícius Beck

Brasília (DF) – Tudo ainda está vivo na memória. Em duas horas e meia, Gilberto Gil fez o sertão de Luiz Gonzaga chegar à praia e mergulhar nas águas de Dorival Caymmi. Emocionou geral. 

Esse cérebro eletrônico de 82 anos é um orixá tropicalista desde os anos 1960, compositor de fusões e justaposições, dialéticas e dissonâncias, esse cérebro de versos e ritmos arrancou no último sábado, 7, lágrimas de 40 mil pessoas no estádio Mané Garrincha, em Brasília.

Não foi só um show, foi a despedida, régua e compasso, aquele abraço. Acordes, ritmos, poesias. Gil e seus sons, Gil e seus dizeres. Gil à frente de sua orquestra afro-brasileira. 

Andando pelo palco, violão com correia preta pendurada nos ombros, dedos produzindo notas facilmente identificadas e voz ecoando letras populares, papaya, pá pá pá iá iá, pá pá iá iá, Gil apareceu elegante por volta das 21h. Vestia camisa, calça e sandália brancas.

Atacou a banda, só quem sabe onde é Luanda, claro, soube dar valor: sopros metálicos e cordas elétricas movem “Palco”, do disco “Luar” (1981). Aplausos crescentes. Em seguida, toca “Banda Um”, de “Um Banda Um” (1982), e “Tempo Rei”, da “Raça Humana” (1984).

Gil celebrou estado em que nasceu com a canção “Eu Vim da Bahia” – Foto: Pridia/ Divulgação

“Ensinai-me, ó, Pai, o que eu ainda não sei”, entoa Gil, na música-título, entre murmúrios de guitarra. A turnê transforma as velhas formas do viver. Antídoto contra o correr da vida. No palco, ressoa a sanfonizada “Eu Só Quero um Xodó”, consagrada por Dominguinhos.

Andou o espetáculo, tal e qual o mar. Gil saúda a Bahia — “porque tem a mãe de Iemanjá e do outro lado o Senhor do Bonfim, que ajuda o baiano a viver”. Nesse momento, no telão,  imagens de Dorival Caymmi revelam sua influência na música, regravada por João Gilberto.

Acostumado às festas de rua e ao samba de roda, às noites de lua e ao canto do mar, chega ao Sudeste. Diz Gil: “Eu Vim da Bahia.” As revoluções estéticas se revelam em “Procissão” e “Domingo no Parque”. Esta última lhe rendeu o 3° lugar no Festival da Record, em 1967. 

Havia a ditadura, porém. Esse período é representado por “Cálice”. Em depoimento, Chico Buarque, parceiro na música, explica tê-la composto para discutir a censura vigente. Recorda o AI-5 e relata que seu microfone chegou a ser silenciado pela mordaça dos militares. 

Tropicalista relembrou tempos do exílio ao interpretar ‘Cálice’ – Foto: Pridia/ Divulgação

Escutemos Chico: o título vem de calar. Um jogo de palavras com o verbo e o pronome átono posicionado logo atrás. É a tal ênclise, como chamam os gramáticos. Muita classe, não é? 

Enquanto Gil lamentava “como é difícil acordar calado”, o público começou a protestar. Vozes explodem: “Sem anistia.” Nas fotos, aparece o deputado federal Rubens Paiva, morto pela ditadura. Abaixo, o jornalista Vladimir Herzog — assassinado, que horror, no Doi-Codi.

Não é só música, aqui a história é outra — tanta saudade. Criada no exílio londrino, “Back to Bahia” evoca a terra natal. A guitarra uiva, Rolling Stones total, em um solo faiscante — tocado por João, neto de Gil, que estava ali com os tios Bem e José, além da mãe Nara. 

Encerrou-se um arco narrativo e começou outro. Gil se reconecta com o sertão da infância em “Refazenda” (1977). Sorridente e sereno, o artista lembra também do II Festival Mundial de Artes e Cultura Negra (Festac). “Conheci Fela Kuti e Stevie Wonder”, conta. 

Gil recebeu o cantor Alexandre Carlo, do Natiruts: “filho da terra” – Foto: Pridia/ Divulgação

Diáspora

Era a deixa para “Refavela” (1977), marcada por uma percussão afro-diaspórica. Antes de encerrar a trilogia “Re” com o hit disco “Realce” (1979), trouxe o reggae ao Mané Garrincha. Levou às lágrimas milhares de pessoas quando cantou “Não Chores Mais”. 

Após a versão para o hit de Bob Marley — introdução ao pandeiro, diga-se —, veio uma sequência de hits: “Vamos Fugir” e “A Novidade”. “Extra”, por sua vez, teve o cantor Alexandre Carlo, do Natiruts. “Filho da terra, menino da Terra”, disse Gil, abraçando-o.

De guitarra em punho, o tropicalista manda ver “Punk da Periferia”. “Sou da freguesia do ó, ó, ó, aqui pra vocês”, cantou, no que se alternava entre levantar o dedo do meio e fazer o símbolo do rock com os dedos. “Extra II (O Rock do Segurança)” foi a surpresa da noite.

Violão de Gil, inigualável, brilhou do desfecho de ‘Tempo Rei’ – Foto:Pridia/ Divulgação

O violão-tambor, inigualável, brilhou no desfecho. Cordas e sopros acentuaram o sotaque sublime de “Se eu Quiser Falar com Deus”, ao mesmo tempo em que “Drão” e “Estrela” ecoaram ternura musical-poética. Era o código sonoro para a plateia dançar tropicalizada. 

Como em toda a ópera afro-brasileira, o fim se abriu à brasilidade. “Expresso 222”, “Andar com Fé” e “Emoriô” incensaram o público, que ainda encontrou fôlego para “Aquele Abraço”. “Viva Santo Antônio, São João e São Pedro”, disse Gilberto Gil, em “Esperando da Janela”. “Toda Menina Baiana” findou o concerto. Tudo permanecerá vivo na memória.


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