Hermeto Pascoal via música em objetos do cotidiano
DM Redação
Publicado em 14 de setembro de 2025 às 18:49 | Atualizado há 3 horas
Marcus Vinícius Beck
Morre o bruxo dos sons, o cérebro magnético, o mago da música. Morrem os tons, os mil tons, os hermetismos pascoais. Morre o músico que tocou com máquinas de costura, garrafas térmicas, raladores de queijo, trens de brinquedo, chaves de fenda, serrotes, panelas.
Morre Hermeto Pascoal, aos 89 anos, no Rio de Janeiro. A família não informa a causa da morte. Apenas diz, em comunicado, que o artista “fez sua passagem para o plano espiritual cercado pela família e por companheiros de música”. “Escutemos o vento”, afirma o texto.
Hermeto era filho de agricultor e sanfoneiro. Nascido numa casa simples em Olho d’Água, no município de Lagoa da Canoa (AL), foi pintado de preto para que Lampião e seu bando não o levassem para o cangaço. O menino albino veio ao mundo no dia 22 de junho de 1936.
Com dificuldade para enxergar, o calor do sertão doía-lhe os olhos. Só podia jogar futebol no fim da tarde, quando a luz do sol diminuía. Na época, interessou-se pela sanfona de oito baixos do pai. Aos 11 anos, seguido pelo irmão mais velho, já a tocava em festas da região.
“As pessoas me perguntam há quanto tempo eu sou músico. Eu respondo: 80 anos. Nasci músico. Música não se aprende, você nasce com ela”, declarava, ao longo dos anos, à imprensa. “A música que eu chamo de universal é aquela que não tem preconceito.”
Mais tarde, a família migrou para Recife (PE), onde Hermeto começou a se apresentar na Rádio Jornal do Commercio. Na capital pernambucana, conheceu o sanfoneiro Sivuca, que sentiu no novato “o fogo sagrado da música”. “Foi uma época maravilhosa”, lembrava-se.
Da Veneza brasileira, instalou-se no Rio de Janeiro e, logo adiante, alcançou São Paulo. Então, fechou os olhos: emocionou-se. Depois, abriu-os: escutava a música da metrópole. Chegavam-lhe aos ouvidos o barulho dos carros, o vai e vem da cidade, os ruídos urbanos.
Hermeto participou, nesse período, de dois grupos: o Som 4 — com o qual entrou em estúdio para gravar um disco — e o Sambrasa — uma espécie de sucessão ao Sambalanço Trio. Até o elepê “Quarteto Novo”, de 1967, viveu entre ensaios, gravações e apresentações.

Tocou flauta no Quarteto Novo, junto dos músicos Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira. Em 1967, fez seu último disco com o grupo. Esteve ainda na formação que ficou em 3º lugar no festival da TV Record — acompanhava Edu Lobo, coautor de “Ponteio”.
Requisitado, habilidoso, excursionou com Geraldo Vandré. Viajou, em seguida, aos Estados Unidos. Sua “fulminante decolagem” para o exterior, como diz Tárik de Souza, foi possível graças a Miles Davis, o trompetista iconoclasta que custeou a passagem do brasileiro.
Diálogo sonoro
Mas o alagoano, cabra do agreste, não falava inglês. E o jazzista, bad guy, não sabia português. Sobrou para a cantora Flora Purim intermediá-los. Miles lhe pede: “Pergunta se ele pode fazer uma música.” Como uma usina de ideias, Hermeto avisa: “Diz que eu já fiz.”
Esse dedinho de prosa culminou no disco-duplo “Live-Evil”. Na falta de definição melhor, situa-se a obra no limite da fronteira entre jazz e rock. Miles gostou tanto das composições de Hermeto (“Igrejinha”, “Nem Um Talvez” e “Selim”) que achou por bem assiná-las.
Sobre o episódio, “o crazy albino” — como Miles chamava o amigo brasileiro — comentava: “Não sou dono da música. Quando eu faço, a música é uma flor que ponho no jardim para quem quiser levar.” Mesmo assim, Edu Lobo xingou o trompetista numa entrevista à Globo.
Ao voltar para o Brasil — o que fez após recusar convite de Miles Davis e Carlos Santana —, Hermeto radicalizou suas experimentações. Dizia que o som a ser feito por aqui lhe era a coisa mais importante da vida. Dessa forma, ia mudando seu universo timbrístico.
Com o tempo, tornava-o jazzístico e vanguardista — como em “A Música Livre de Hermeto Pascoal”, de 1973. Retornou aos EUA para gravar “Slave Masses”, de 1977, no qual extrai sons de um porco. “Gravar muita coisa é desperdício”, afirmou ao jornalista José Teles.
Em 1979, durante o Festival de Montreux, dividiu o palco com Elis Regina. Fizeram, juntos, três standards: “Corcovado”, “Garota de Ipanema” e “Asa Branca”. Para o jornalista Roberto Muggiati, que estava na plateia, são os 13 minutos mais “intensos da história da MPB”.
No ano passado, saiu o disco “Pra Você, Ilza”. E agora, mortos os acordes entortados, vai-se embora aquela polirritmia que releu a bossa nova, o forró e o bebop. Encerram-se, aqui, os improvisos. Acaba-se a espontaneidade. Cessam-se os ruídos: Hermeto se foi.