Cultura

Julio Cortázar desautomatiza linguagem com prosa jazzística

DM Redação

Publicado em 15 de agosto de 2025 às 20:43 | Atualizado há 2 horas

Cortázar dizia que escrita o divertia enquanto organizava ideias
Cortázar dizia que escrita o divertia enquanto organizava ideias

Em destaque nas livrarias goianas, escritor belgo-argentino construiu obra permeada pelo improviso por movimentos circulares

Marcus Vinícius Beck

Goiânia dança lá fora, nessa tarde abafada de sexta-feira. Na Livraria Palavrear, retiro da estante o clássico “Rayuela”, de Julio Cortázar (1914–1984), traduzido ao português por Eric Nepomuceno. “¿Encontraría a la Maga?”, leio, num fluxo de consciência rayueliano.

Sempre releio Julio Cortázar para me rodopiar nos improvisos da palavra, de maneira que sua escrita percorre labirintos jazzísticos ao mover-se na cauda do tempo — explorando o silêncio, nos levando às bordas da vida, como quem dança numa noite delicada e lúdica.

A poética cortaziana, segundo o crítico Davi Arrigucci Jr., é jazzy em seu método, porque transforma o tema, modula-o em espirais circulares e surrealistas, destrói as fórmulas do realismo; fragmenta a rua, o som de Louis Armstrong e Duke Ellington, as fantasias de André Breton e Antonin Artaud, o amor de Maga, os olhos de Maga, o beijo de Maga.

Capa de ‘O Jogo da Amarelinha’ em edição traduzida por Eric Nepomuceno

Maga, essa mulher intuitiva do Clube da Serpente, sente as mãos interessadas de Gregorovius lhe acariciarem os cabelos. Oliveira se enciuma. “Todavia, se fosse eu quem lhe acariciasse os cabelos, e ela me estivesse contando sagas rioplatenses, e eu lhe manifestasse a minha lástima, então teria de levá-la imediatamente para casa”, conjectura o boêmio.

“Aí está”, pensa Horacio Oliveira, “terei de te dar uma surra, Ossip Gregorovius, pobre amigo meu. Sem vontade, sem lástima, como isso que Dizzy Gillespie está soprando sem lástima, sem vontade, tão absolutamente sem vontade isso como que Dizzy está soprando.”

Mãe e duranga, Maga deixou o Uruguai e foi para Paris, cenário de parte de “O Jogo da Amarelinha”, publicado originalmente em 1963. Vive um romance conturbado com Oliveira, intelectual sem mucho diñero e sempre disponível para a flânerie. Os dois marcam encontros cegos pelas ruas parisienses, como se a metrópole fosse cúmplice dessa paixão.

“Preferíamos nos encontrar na ponte, no terraço de um café, no cineclube ou agachados junto a um gato em qualquer pátio do Bairro Latino”, enfatiza Oliveira, em certa altura do romance. Quando não estavam chutando tampinha pelas ruas, Oliveira e Maga frequentavam o Clube da Serpente em apartamentos revestidos por nuvens de cigarro.

Ali, com o toca-discos crepitando a voz bluesy de Bessie Smith ou arrulhando o sax jazzy de Coleman Hawkins, a patota discursava sobre artes, filosofia, política, ciência e literatura — prosa ou verso — aos tragos de um pileque de qualidade duvidosa. Iam de Arthur Rimbaud a Georges Bataille, de Paul Klee a Stan Getz, ou simplesmente falavam das notícias de jornal.

É, aqui estou: jogando. Prosa lúdica, essa. O narrador relata que Oliveira apodera-se da mão da Maga e conta-lhe “atentamente” os dedos. “Depois, colocou-lhe a pedra na palma da mão e dobrou-lhe os dedos um a um e, em cima de tudo, colocou um beijo. A Maga viu que fechara os olhos e parecia como que ausente”, descreve. Ela, então, pensa: “Comediante.”

Edição em língua espanhola do romance que transformou a literatura no século 20

Um amor desvairado, louco e surreal, um amor imperfeito — é disso que se alimenta “Rayuela”. É sobre esse núcleo instável que se erguem a forma e o movimento desse “romance total”, como o definiu o escritor peruano Mario Vargas Llosa, fã de Cortázar.

Romance total que, diga-se, você lê a seu gosto. Propõe o escritor-cronópio no “Tabuleiro de Direção”: “À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros. O leitor fica convidado a escolher uma das seguintes possibilidades”, explica, dizendo que o primeiro se deixa ler “na forma corrente” e o segundo “começa pelo capítulo 73”.

Literatura enquanto jogo saltitante, linguagem que filosofa sobre si mesma, pontos de vista narrativos que se alternam ao sabor da prosa. Nesse romance-jogo, o escritor teoriza o texto e, mesmo assim, cria ficção das boas — como aponta Arrigucci em um intricado ensaio.

Ou seja, “é como se a narrativa se tornasse uma narrativa em busca de sua própria essência, centrando-se sobre si mesma.” “A narrativa de uma busca se faz uma busca da narrativa”, analisa, na obra “O Escorpião Encalacrado: A Poética da Destruição em Julio Cortázar”.

Não é de se espantar, pois, que haja um personagem teórico cuja função é desconstruir todo o texto rayueliano. Morelli, assim, induz o leitor-jogador a reflexões cabeçudas sobre arte. “Os surrealistas acreditam que a verdadeira linguagem e a verdadeira realidade estavam centradas e relegadas pela estrutura racionalista e burguesa do Ocidente”, conceitua.

Para Cortázar, a escrita era um jogo, uma diversão que lhe permitia organizar a vida, as palavras e as ideias. “Há, por um lado — e isso é ao que você se refere agora —, uma tentativa de dinamitar a razão excessivamente intelectual ou intelectualizada”, dizia.

Lá fora, Goiânia continua dançando. Recoloco “Rayuela” na estante. Sorridente, minha esposa se aproxima e me lembra, colocando as mãos sobre meu braço, que já tenho esse livro em casa. “Acho que vou querer ‘Os Prêmios’, meu bem.” Seguimos pelo Leste Universitário.

Foto de destaque: Mubi/ Divulgação


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia