Kães de Rua atacam juízes, políticos e filhinhos de papai
Redação DM
Publicado em 21 de novembro de 2016 às 10:51 | Atualizado há 7 mesesA pós-modernidade embaralhou tudo: pensamento social tornou-se cultura, política virou pensamento social. E cultura é política. Em um ambiente com dramas humanos de ocupações e protestos, desencanto e prisões de políticos-criminosos, a radicalização começa a tomar conta novamente da periferia.
E a prova disso é que os grupos de participação popular estão se organizando cada vez mais em metrópoles como Goiânia. Dá para sentir a fumaça saindo das ruas.
O grito que se ouve agora vem de um barracão na vila Santa Helena ou Pedro Ludovico ou Novo Mundo – ou qualquer outra periferia da cidade. E o grito é forte. Chega enquadrando todo mundo, principalmente políticos e pastores que arrancam a “lã dos cordeiros”.
“Hoje, o movimento continua muito forte. Mas muitos resolveram se afastar diante do fortalecimento desse estilo de música, o funk que está na onda. Estamos colados na black music mesmo” – Tio Lu
No último domingo, no CRA (Avenida Anhanguera, com BR 153, Vila Morais) um movimento histórico das ruas de Goiânia, formado pelos bboys, DJs e rappers, festejou esta reunião de pensamento social, cultural e política que se embrulha na denominação hip hop.
“Periferia é vida”, clama Tio Lu, em uma das músicas que pretende lançar com o disco “Acima do Limite…Fora do Controle”.
Trata-se do Kães de Rua (Black Man, Jeff Preto e Tio Lu) que resolveu usar uma ferramenta poderosa para divulgar sua ideologia inconformista e ainda não deformada pelo sistema: a música.
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O grupo é sobrevivente da mediocridade cultural. Um dos mais festejados de Goiás, Kães teve início no início da década de 1980, quando dançar break era sinônimo de ser olhado de forma estranha, subalterna, de cima para baixo. “Hoje, o movimento continua muito forte. Mas muitos resolveram se afastar diante do fortalecimento desse estilo de música, o funk que está na onda. Estamos colados na black music mesmo”, diz Tio Lu ao DMOnline, profeta e poeta das ruas que formou a escola do rap no estado.
A poesia dos “cachorros” é agressiva: bate fundo no coração. Enquanto percute a caixa bumbo, chimbau dobrado, o trio metralha: “Da época das sombras/ os loucos que viraram monstros/ sem descontos sem papas nas línguas/ olha só as sinas/ quem pensou que era funeral/ passa mal/ após a morte olha só a volta/ a revolta/ atropela os sem lógicas/ os bonecos das modas/ sempre fui anti-moda/ diferente dos revoltados/ só dentro da escola/ eu sou a escola/ a escória/ que muda a história/ após o diploma/ ainda tô no mundo das sombras/ o tempo pra nós não descansa/ fantasmas, máscaras, a luta não passa/ cheios de pesadelos/ cheios de guerreiros/ o meu tabuleiro/ eu meu escrevo/ sem rodeios/ Um preto ligeiro/ dos anos oitenta/ a pressão é forte as vezes o coração não aguenta/ minha família me alenta/ Kães de Rua na cobertura/ sim, me fez passar por cima de altas amarguras/ alienígenas convicto/ longe dos sem currículos/ que faz papel de ridículos/ pros anseios dos humildes/ periferia é vida/ periferia é vida/ povos sofridos/ não merecem isto/ sou outro tipo/ tenho currículo/ respeito dos aliados de várias quebradas e dos antigos/ nunca vão achar um pé/ meu coração esta na ralé/ e nem descaracterizar meu perfil/ minha história é verdadeira meu chapa, sou um fogo no pavio/ Hip Hop pra sempre a mil/ quem me conhece sabe muito bem/ o que estou digo/ eu não faço tipo/ e sem fuxico/ então seu ridículo/ me mostre um feito que é seu, seu cópia da cópia da cópia da cópia huuu…..dos maus entendidos/ então pega o ritmo. Trilha sonora da perí/ um preto no equilíbrio/ criando sua própria invencibilidade/ para os dias que te aguardem/ cada dia um teste/ sem da brecha/ os flashes/ sinistro longínquo/ meus versos percorrem caminhos/ sinistro longínquo/ meus versos percorrem caminhos”.
Ao falar que não se pode descaracterizar a história, Tio Lu vai pras ruas sangrentas e deixa claro que não teme Estado, polícia, igreja e que só acata a lógica. E se ela é perversa, ele vai combater.
A música, convenhamos, é um choque de tirar o fôlego – como o grupo faz questão de fazer quando canta cinco palavras em um segundo.
As canções são mísseis contra o sistema: “Amor ao Hip Hop”, por exemplo, coloca os pingos nos is, “Morte aos porcos” deixa claro o ânimo dos cantores e “Pior que bandidos” manda um recado para os políticos, juízes e polícia – que faz o que estes mandam. “Pior do que os bandidos, só os políticos/ e a polícia/ e a justiça (…) Então, meu irmão, o povo corre perigo/ Polícia aliada dos corruptos, juízes são outros pior/ só andam escondidos e não condena os canalhas (…) Pior que os bandidos/ Só os políticos, que roubam do pais, estados e municípios”.
A classe que tem mais ladrão é questionada na música por outro ataque às instituições corrompidas: “Sua igreja tá podre e envolvida com a política”, dizem ao falar sobre os crentes falsos que habitam as cidades.
Para quem ainda não entendeu, a chance é ouvir ao vivo. Vá com medo, mas não dos rappers e dançarinos. Mas da realidade narrada, que mostra uma violência cruel que não é imaginária nem uma sensação. Mas marcas na pele.
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O protesto de hoje terá lançamento do livro “História do Hip Hop”, escrito pelo biógrafo paulista Kaseone (que não esquece do pioneirismo dos Kães), além de músicos de Goiás e do Distrito Federal.
[box title=”Branco no preto”]
Conheci o Kães de Rua no mesmo ambiente em que surgiu a banda. Era o loirinho que observava os negros de calças largas e camisa Adidas passar pelas ruas com um som balanceado nos dois alto-falantes.
Minha guitarra não incomodava o movimento. Afinal, a periferia era a mesma, apesar de mudarem os nomes de rua para rua – uma estratégia dos que mandam na cidade como forma de separar moradores, de romper laços de solidariedade e de manter uns distantes dos outros. Bairro grande e forte é ameaça aos poderes constituídos.
Mas logo na adolescência deixei claro ao Tio Lu, o profeta do movimento, que eu conhecia de cor e salteado o disco “Cultura de Rua”, aquele que chegou para marcar história e microfonar a revolta de cantores como Thaide e Dj Hum. Daí a longa amizade.
Tio Lu é um cara integro da cultura goiana. Um artista reflexivo e político. Seu grupo deixa claro qual é a missão: “fazer rap pela arte, não pelo dinheiro”.
O disco relata este passado de Kães de Rua e Eletrorock. Black Man, Jeff Preto e Tio Lu integram uma narrativa de colagens e diversidade que presta reverências aos tambores africanos.
Não foi uma ou duas vezes que tentamos fazer parcerias, encaixar riffs de guitarra e tornar o rap mais orgânico. Esta sempre foi a preocupação deles: dar vida e riqueza à manifestação. E conseguiram.
Embalamos inúmeras conversas sobre como fazer isso. Hoje, ouço Public Enemy e Racionais graças ao Tio Lu. E ele foi abraçar Robert Johnson e Muddy Waters após ver as águas lamacentas que eu tinha a oferecer.
Das experiências de vida, uma das melhores é saber que, em alguns momentos, a justiça tarda, mas não falha. O movimento é pesado. É bruto. Selvagem. E eu sabia disso desde a primeira vez que conversei com os caras.
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