Brasil

Ladeiras do pelourinho guardam as formas da história

Redação Diário da Manhã

Publicado em 19 de junho de 2025 às 15:01 | Atualizado há 3 horas

Fundação Casa de Jorge Amado abriga acervo literário do festejado escritor baiano - Fotos: Marcus Vinícius Beck
Fundação Casa de Jorge Amado abriga acervo literário do festejado escritor baiano - Fotos: Marcus Vinícius Beck

Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco desde 1985, bairro histórico conecta passado e presente. Salvador foi a capital do país entre os séculos 16 e 18 e, a partir de 1558, tornou-se mercado de escravos. Entenda a importância de conhecer a Bahia

Marcus Vinícius Beck

Salvador (BA) – Numa tarde ensolarada, me pus a flanar pelo Pelourinho, em Salvador, na Bahia. Era dia de festejo a São João, mês de junho. Em minha cabeça, Gal Costa dava um show imaginário.

Olha pro céu, meu rapaz, sopra-me o id. De repente, embalado pela beleza e razão, assobiei “São João, Xangô Menino”, versão dos Doces Bárbaros. É, São João, tu és o menino Xangô.

Saio, pois, do disco “Doces Bárbaros Ao Vivo” (1976) e contemplo o Largo do Pelourinho. Diante de mim, um casarão azul se revela imponente com sua arquitetura colonial. Ali está, percebo, a Fundação Casa de Jorge Amado, que funciona de segunda a sexta, das 10h às 18h. 

Jorge Amado, se você não sabe, foi diagnosticado maluco. Como ele ousaria arriscar os arquivos de sua vida inteira num local inseguro? Pior, diziam, como ele iria doá-los a um lugar povoado por prostitutas e marginais? Simples: aprendera lá a cultura popular.

Para o escritor, expoente do romance regionalista brasileiro, só fazia sentido criar uma fundação literária com seu nome se fosse no Pelourinho. Cenário de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, ali os personagens do escritor se misturavam às ladeiras do bairro histórico. 

Salvador foi a cidade de Jorge Amado: “nela quero morrer” – Foto: Marcus Vinícius Beck

“Quando digo que Zélia é a responsável pela existência da fundação cultural no Pelourinho, nascida da doação de meu acervo literário que leva meu nome, digo a verdade. Não fosse Zélia, o acervo estaria a essa hora numa universidade norte-americana”, dizia Jorge. 

Plantada sobre a montanha e penetrada de mar, Salvador foi a cidade de Jorge Amado. Em todas as que andou, ele a revisitou “num detalhe de beleza”, conforme o livro “Bahia de Todos os Santos”, de 1938. Mas nenhuma era, por assim dizer, “tão densa e oleosa”. 

Falava ainda que não havia nada igual para viver. “Nela quero morrer, quando chegar o dia”, declarava o escritor, que na capital baiana se foi em agosto de 2001, aos 88 anos. “Para sentir a brisa que vem do mar, ouvir à noite os atabaques e as canções dos marinheiros.”

Cá estou: sigo ladeira abaixo, tentando encontrar aquela Bahia de todos os santos da qual falavam Dorival Caymmi e seu amigo Jorge Amado — ou o que dela ainda restou. Afinal, a gentrificação — sem maniqueísmo, por favor — me saltou aos olhos soteropolitanizados. 

No estudo “Gentrification no Parque do Pelourinho”, o geógrafo Daniel Ribeiro defende que centros culturais e museus resgatam a memória da população. Segundo o pesquisador, esses espaços desenvolvem ações para manutenção das práticas culturais no bairro histórico. 

Companhia Balé Folclórico da Bahia exibe espetáculos de cultura popular em teatro – Foto: Marcus Vinícius Beck

“A existência de escolas que pudessem ter projetos conectados com todas essas atividades seria também uma forma de ampliar o dinamismo do lugar”, aponta Daniel, em sua dissertação de mestrado defendida no Instituto de Geociências da UFBA, em 2011. 

Lá no fundo, a uns dois ou três quarteirões daqui onde estou, a música junina se manifesta — viva São João. As ruas de pedra me levam à sanfona. Subo para a calçada da Rua Maciel de Baixo, sentido Balé Folclórico da Bahia. Um cara passa ao meu lado ouvindo reggae.

Sons

O samba-reggae, diz a historiadora Víviam de Jesus Queirós, se entrelaça às questões da diáspora africana na pós-modernidade. “Essas questões estão sobremaneira relacionadas à recriação de uma identidade que subverta os espaços de controle das estruturas sociais.”

Segundo a pesquisadora, em sua dissertação de mestrado defendida na UFBA, o estilo encontra sustentação em um discurso contra-hegemônico. “Colaborou na criação de novas e refinadas performances corporais”, explica Víviam, que publicou a pesquisa há nove anos. 

Pelourinho testemunhou o nascimento do Brasil e une passado e presente – Foto: Marcus Vinícius Beck

Ou seja, o samba-reggae é o povo unido em torno de uma expressão artística. Uma expressão artística galvanizada no Pelourinho. Não à toa, Neguinho do Samba regia a percussão do grupo afro-soteropolitano Olodum. Sua morte, aos 54 anos, chocou a todos.

“No Largo do Pelourinho, seu lugar preferido, caixão ao centro da praça. O que poderia ser uma performance deprimente e fúnebre se converteu na saudação de um quilombo a mais, um Zumbi que partia”, lembra Víviam, que viu o povo tocando prato, berimbau e palmas.

Entre tambores e palavras, vou andando. O Pelourinho — com suas ladeiras sinuosas e casarões renascentistas — testemunhou o nascimento do Brasil. Salvador, nossa primeira capital, conecta passado e presente. Se você embarcar num voo direto vindo de Goiânia, vai encontrar um destino turístico. Mas, se você flanar por lá, verá as formas da história.


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