Cultura

Luto Alma Cultural

Redação DM

Publicado em 4 de março de 2017 às 03:08 | Atualizado há 7 meses

Textos inéditos e inspirados do jornalista, cronista, apresentador e diretor Doracino Naves, que falavam de temas existenciais, amorosos ou nostálgicos e que habitavam aos sábados a página quatro deste caderno cultural, deixaram saudades. Pois, na última segunda-feira (28), apesar de toda euforia carnavalesca, grande parte dos moradores de Goiânia, principalmente aqueles ligados à arte e ao jornalismo, receberam a triste notícia da morte desta alma cultural. Amanhã, às 18 horas, familiares e amigos irão celebrar a memória do jornalista na Paróquia do Imaculado Coração de Maria, em sua missa de sétimo dia.

Doracino Naves, aos 59 anos, lutava contra um câncer no pâncreas e não resistiu à uma hemorragia, ocorrida durante cirurgia no Hospital Araújo Jorge (HGG). Deixou a mulher, a romancista Clara Down, três filhos (Marcus Naves, Soraya Naves e Márcia Naves) e sete netos. Sua morte, comoveu grande parte do meio cultural goiano.

Deixou ainda pegadas firmes no cenário cultural da cidade. De espírito público, a política, o jornalismo e o mundo dos negócios dividiram e se misturavam em sua biografia. Em 1988, por exemplo, foi vereador. Durante seu mandado, criou a lei que instituiu o Festival Nacional de Cinema em Goiânia, sancionada pelo então prefeito Nion Albernaz. Em 1994 e 2008, respectivamente, foi secretário estadual e municipal de cultura.

Incansável formou-se em jornalismo aos 50 anos e resolveu criar suas próprias formas de trabalho. Criou, apresentou e dirigiu o Programa Raízes Jornalismo Cultural, que era exibido às tardes de sábado na PUC-TV. O programa, que entrevistava artistas (escritores, pintores, músicos, etc) anônimos e reconhecidos gerou frutos.

A partir dele, em parceria com a mulher, Clara Dawn, criou a Editora Livres Pensadores, de onde editavam a Revista Raízes, que homenageava, a cada capa, um artista goiano. Mais recentemente centralizou suas ações no mundo digital, com o nascimento do Portal Raízes. E este site vingou: tem ganhado dimensões nacionais, e apenas seu Facebook possui mais de meio milhão de seguidores.

Apesar da alma cultural, ao lado dos filhos mostrou que tinha também tino e visão para os negócios e ajudou a construir uma franqueadora multinacional, especializada em intermediação cartorária, a Cartório Mais. “È incrível como a presença do meu pai era forte na minha vida, dos meus irmãos e dos goianienses. Isso nos dá força para continuar o que ele começou”, disse a filha do jornalista Soraya Naves.

A última crônica de Doracino Naves publicada no DMRevista, no dia 25 de fevereiro

No texto, o jornalista se despediu das suas crônicas semanais neste caderno, com uma história bem humorada sobre o andarilho bon-vivant, Luiz Baiano, no texto “Carpe Diem”, que termina com a simbólica–e que soou até profética–frase em latim do filósofo e poeta, Horácio Flaco: “Carpe diem, quam minimum credula postero (aproveite o hoje, confie o mínimo possível no incerto amanhã)”. Leia–ou releia ou artigo a seguir.

Carpe diem

Depois que me engracei com o jornalismo cultual não tenho tempo para nada além disso. Sou um idealista com cara de imbecil. Mas tenho o universo dentro de mim porque ponho o melhor da minha alma em tudo o que faço. Por isso vivo o coletivo. Hoje, sem descuidar das cogitações desse espírito inquieto, o centro das minhas atenções, depois da família, é a cultura e o jornalismo.

Acredito em utopia. Inclusive na maior fantasia do Criador; o homem. Igual à mangaba, o homem só dá frutos nas alturas, no céu das quimeras. A cultura popular ensina que a mangaba é um santo remédio para curar a hipertensão. Mas, claro, não substitui o exercício do sexo feito com amor, ato final da sedução. Luiz Baiano, andarilho que contratei como caseiro numa pequena chácara na Vargem Bonita curtia sua paixão, além da cervejinha. Luiz arrastava as asas para o lado de Gerci, vizinha curvilínea com cara de aventureira safada.

-Patrão, ela tem um cangote tão branquinho.

Gercí era a mulher do dono da venda. Luiz passava mais tempo lá do que na chácara. O mato crescia, o cachorro latia e ele nada fazia. Assim passava o dia. Fui durão, mas gostava do seu jeito descolado da realidade. Disse-lhe que se quisesse vencer na vida teria que trabalhar.

– Sabe, patrão, a minha meta na vida é não vencer. Se me sentir realizado eu paro. Nem imagino onde será o ponto final da minha história. Os lugares para mim são estações de uma longa jornada. Sou um cidadão do mundo. É assim que me encontro. Já vivi em muitos lugares do Brasil. Não vou ficar aqui por muito tempo, por isso não vou polir as minhas grades. Quero me libertar da prisão rotineira dos lugares, das pessoas e de suas crenças. Um dia vou embora com a Gercí.

Fiz cara de zangado, pois ela era casada. Ele nem ligou para a minha bronca. Continuou seu blá-blá-blá…

Calei-me diante dessa cantilena. Mais tarde, depois do banho, Luiz jogou Leite de Rosas no corpo, me pediu dez reais para ir à festa de São João, na venda do Pato Rouco, do outro lado do córrego Sapé. Isso foi numa sexta-feira à noite. No sábado ao pôr do sol ele ainda não tinha voltado. Eu tinha um compromisso de visitar um tio em Palmelo e fui. Quando voltei, no domingo, nem sinal de Luiz. Pensei que tinha se ofendido com a minha bronca e ido embora. Na segunda-feira, pela manhã, quando saía para trabalhar ele apareceu sujo e arranhado. Mas, nada de grave.

-Patrão, o senhor nem imagina o que me aconteceu. No meio caminho tinha um buraco seco de cisterna. Caí e lá fiquei sem jeito de sair. Eu estava pertinho da venda do Pato Rouco. O pior foi ouvir a voz animada de Gercí dançando a noite toda. Para o senhor não duvidar de mim olha aqui os dez reais que me deu. (O dinheiro estava sujo e amassado). Quem me salvou foi o Zé do Leite que, agora de manhã, ouviu os meus gritos e jogou uma corda por onde subi até a boca daquele buraco.

Havia ingenuidade no jeito simples de Luiz Baiano; alma quase pura. Isso me comoveu a ponto de não ligar para o seu modo livre. Fui trabalhar certo de que o mato continuaria a crescer sem ele capinar. Pensei em arrumar outra pessoa para fazer o serviço e deixá-lo livre para cortejar a sua amada. Mas reconheço que havia um certo fascínio naquele sujeito. Nesse dia, preocupado, voltei mais cedo do que o costume.

-Luiz! Ô Luiz! Onde você está?

Pensei que estava no córrego que corre no fundo da chácara. Bati à porta do seu quarto. Silêncio… Um calango apressado estala as folhas secas que não param de cair do pé de guapeva. No alto um pássaro cantou:

-Bem-te-ví!

O vizinho, fofoqueiro, vem com a notícia que mal cabia na sua boca:

– Luiz Baiano fugiu com dona Gerci. Precisa ir à delegacia dar queixa, ele roubou o seu carrinho de mão.

Nem liguei para a lamúria do vizinho, nem ao carrinho de mão. Afinal, Luiz Baiano encontrara sua cara metade andarilha. Continuaria sua aventura pelo mundo. No íntimo desejei que fossem felizes. Há algo misterioso que chama os andarilhos a rodar o mundo nas patas do cavalo do tempo, do amor e da morte.

Carpe diem, quam minimum credula postero (aproveite o hoje, confie o mínimo possível no incerto amanhã). Carpe Diem!

 

Amor, jornalismo e literatura

1-3

Pedimos à romancista Clara Dawn, para que falasse um pouco sobre o marido Doracino Naves. Em luto, algumas hora depois a escritora mandou uma carta do jornalista escrita no dia 22 de janeiro de 2011. A carta, era uma despedida, daquilo que parecia ser uma breve viagem, mas mesmo assim o jornalista acalentava a sua amada, com um pedido de casamento, bem ao estilo deste lírico casal. Confira a carta a seguir:

“Minha doce Clara”

Lembrar de você provoca todos os meus sentidos. Sua voz suave me faz rodar o universo mesmo com nossos corpos teimosamente ligados na terra. Essa lembrança me faz bem, mas vem a realidade dos próximos dois ou três dias.

Vou para Maisais um fim-de-semana com a sensação de que deixo pra trás uma coisa muito preciosa. Mas, não é só impressão: deixo você. Com certeza, amor da minha vida, estarei, em cada instante destes dias, pensando em você.

Vou lhe dizer uma coisa muito importante: não estou conseguindo ficar sem você, nem por um minuto. O que podemos fazer para resolver isso?

Também não quero que você fique triste nem um segundo. Por isso, amor da minha vida, pense, como eu farei nesses dias, nos belos momentos que tivemos juntos. Já que eu falei nos cinco sentidos, envio a você cinco beijos e um pedido: quer casar comigo?”.

 


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