Cultura

‘Medida Provisória’ denuncia racismo estrutural no Brasil

Estadão Conteúdo

Publicado em 11 de abril de 2022 às 17:03 | Atualizado há 3 anos

Ubiratan Brasil

Empolgado com a peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, o ator Lázaro Ramos contatou cineastas que pudessem se interessar em levar a história para a tela. “Conversei com alguns, como Sérgio Rezende e Joel Zito Araújo, mas eles estavam com seus projetos”, conta ele, que decidiu assumir a função de diretor – o resultado é “Medida Provisória”, que estreia nacionalmente na quinta-feira, 14.

O longa é
ambientado em futuro distópico e acompanha Antonio (Alfred Enoch), um advogado
que pede indenização ao Estado brasileiro pelo tempo de escravização, o que
motiva o governo a incentivar os descendentes a voltarem para a África. Depois
de um tempo, porém, o que seria compulsório se torna obrigatório com a
decretação de uma medida provisória que obriga os negros – chamados
eufemisticamente de “cidadãos de melanina acentuada” – a voltarem ao continente
africano.

“Dirigi
a peça em 2011 e, em seguida, comecei a produção do filme, que foi rodado anos
depois e deveria ter estreado em 2020 A pandemia e os problemas do governo com
o setor cultural adiaram para agora, quando muitos detalhes do que parecia
distópico hoje são praticamente reais”, comenta Lázaro. “O início do projeto
coincidiu com o momento em que a população negra no Brasil estava discutindo
intensamente o seu espaço de formação de identidade, direitos e deveres.”

No
longa, Antonio tem um relacionamento com Capitu (Taís Araújo), médica com quem
vai ter um filho. Ele divide apartamento com André (Seu Jorge), amigo com quem
ficará confinado a partir do momento em que “cidadãos de melanina acentuada”
poderão ser presos e deportados. Por causa disso, Capitu deixa o hospital onde
trabalha e se abriga em um afro-bunker, espécie de quilombo moderno, no qual
cidadãos negros se refugiam e organizam a resistência.

“O filme
faz um alerta para preparar o presente para evitar esse futuro distópico”,
conta Lázaro, que escalou um grande elenco: 77 profissionais. “Nós nos juntamos
na sala e oferecemos personagens a cada um deles: advogada, cristão,
candomblecista, adolescente, bombeiro, youtuber, vendedor ambulante… Assim,
fomos construindo um ambiente onde havia diversidade. A proposta era fazer um
laboratório criativo de um dia com esses atores, imaginando o que aconteceria
se a medida provisória fosse realmente decretada e se esse neoquilombo de fato
existisse. Como cada personagem se comportaria nesse ambiente, nesse
esconderijo?”, observa ele, em texto que vai ser publicado no livro Medida
Provisória: Diário do Diretor (Cobogó).

Isso
auxiliou na caracterização dos protagonistas. “Antonio é um homem engajado,
sério, que acredita no poder da lei e das palavras e que luta por sua condição”,
comenta Alfred Enoch, ator anglo-brasileiro que vive em Londres e que se tornou
conhecido por ter interpretado o bruxo Dino Thomas nos filmes da saga Harry
Potter.

De fato,
em uma cena impactante, o advogado, na sacada de seu apartamento, desabafa aos
brados aos vizinhos perseguidores: “Esse país também é meu.”

Em outro
momento pungente do filme, André, esfomeado, sedento e humilhado por terem
cortado a eletricidade do lar, revela sua fragilidade psicológica ao pintar a
cara com tinta branca, na esperança de, assim, recuperar sua dignidade.

“Seu
Jorge vive um personagem bem-humorado, mas combatente, o que permite momentos
de relaxamento na trama”, conta Lázaro, que rodou três finais, mas optou por um
quarto, o da passeata, na qual contou com participação voluntária de cerca de
150 pessoas e incluiu nomes como Conceição Evaristo e Emicida.

É
aconselhável, pois, acompanhar os letreiros para conhecer partes das cenas
deletadas. “Quis mostrar a convivência coletiva e estimular um debate pela luta
antirracista”, comenta. “É o momento de se falar e assuntos que sempre
foram silenciados saem como vômito, depois de tanto tempo guardados.”

Três
perguntas para Taís Araújo

Capitu
passa por uma grande transformação em sua vida. Como você vê isso?

É
verdade. Como médica, ela vive em um ambiente elitista e, por escolha, não
gosta de falar sobre racismo. Mas, quando tudo acontece, ela, que está grávida,
percebe que ser mãe de uma criança negra só vai potencializar sua angústia. Ela
se transforma aos poucos.

É
curioso o nome da personagem, não?

Sim,
remete a Machado de Assis, claro, escritor mulato, mas, enquanto no romance Dom
Casmurro ela é julgada a partir do ponto de vista de dois homens, no filme
Capitu comanda a própria trajetória e, ainda que no bunker ela fica um tanto
perdida, é lá que vai encontrar seu rumo.

Você
que convenceu Lázaro a dirigir o filme?

Na
verdade, ele já tinha todo o projeto na cabeça, mesmo quando consultou outros
diretores. Tudo já estava esquematizado. Só dei o empurrão que faltava.


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