Cultura

Metamorfose de Otto

Redação Diário da Manhã

Publicado em 18 de julho de 2025 às 12:02 | Atualizado há 43 minutos

Artista pernambucano repassa trajetória musical em retorno à capital goiana - Fotos: José de Holanda
Artista pernambucano repassa trajetória musical em retorno à capital goiana - Fotos: José de Holanda

Cantor celebra carreira no festival ‘Shiva 10 Anos’. Enquanto isso, o disco “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” avança no streaming e Otto Maximiliano vocaliza que o leite se derrama sobre a natureza morta

Marcus Vinícius Beck

Certa manhã, ao acordar de sonhos intranquilos, o cantor Otto Maximiliano Pereira de Cordeiro Ferreira encontrou-se metamorfoseado. Sentia a força do pé na bunda, a mãe tinha morrido, a gravadora não o queria mais — há um lado que pesa e outro que flutua. 

Tal e qual o caixeiro-viajante Gregor Samsa, Otto não morre na primeira chinelada. Para ele, atração no evento “Shiva 10 Anos”, realizado no sábado (19), a obra do escritor Franz Kafka é humana e simples. “Eu tento ser muito simples também”, afirmou, em 2016, à “Noize”.

“O homem sempre vai ter esse lado bicho”, atestou, dizendo que a capa do disco “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” (2009) retrata o mofo da humanidade. “A gente já era bicho, já era mofo e ainda estava discutindo se a gente era ou não era — e a gente já era.”

Capa do disco ‘Certa Vez Acordei de Sonhos Intranquilos’, de 2009

Enquanto o disco “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” avança no streaming, Otto diz que o leite se derrama sobre a natureza morta. “Quando perdi você, ganhei a aposta”, vocaliza. “Quando eu saí da tua vida, bati a porta. Saí morrendo de medo do desejo.”

Fosse aquele inseto monstruoso, como em “A Metamorfose”, Otto ficaria preso ao absurdo da existência. O que aconteceu comigo? E se eu esquecesse essa aflição? Vai cantando, porém.

“Num dia assim calado você me mostrou a vida — e agora vem dizer pra mim que é despedida”, lamenta Otto, em “O Leite” — a segunda faixa de “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos…” “O leite derramado sobre a natureza morta. Me choca, me choca.”

Em seu quarto álbum, o compositor reuniu um timaço. O guitarrista Fernando Catatau agrega certa psicodelia emotiva às faixas “Filha” e “Meu Mundo Dança”, enquanto o baixista Dengue e o baterista Pupillo, da Nação Zumbi, forjam o clima ideal para Otto desdemonizar-se. 

Uma vez exorcizado, desfeito o casamento com a atriz Alessandra Negrini e desamparado pelas dores do mundo, o machucado artista entoa na faixa “Crua”: “Dificilmente se arranca lembrança”, lamuria-se. “Por isso da primeira vez dói, por isso não se esqueça: dói.”

Compositor criou obra-prima em 2009 ao se ver passando por momento difícil – Foto: Rafael Rocha

É, caro Xico Sá, Otto degustava a doce vingança de estar vivo, sacaneando a tristeza. “E ter que acreditar num caso sério e na melancolia que dizia. Mas naquela noite que eu chamei você fodia, fodia. Mas naquela noite que eu chamei você fodia de noite e de dia”, sopra. 

Às vezes, reconhece o cantor-compositor-poeta, o término esfola o homem. Sofre-se. Rasteja-se na fossa. Marcha-se na lama existencial. Memórias de línguas se achando, do perfume inebriando lembranças — lembranças pretéritas de transas vividas e roupas ao chão. 

Os ciclos vêm. Vêm e vão. A lembrança permanece, todavia. Em “Seis Minutos”, morre-se, ressuscita-se, vive-se, finda-se, morre-se. “Seis minutos. Instantes acabam a eternidade”, vocaliza. “Isso é pra viver. Momentos únicos. Bem junto na cama de um quarto de hotel.”

Recita: “E você me falou de uma casa pequena, com uma varanda, chamando as crianças pra jantar”, ressoa nos tais “Seis Minutos”. “Foi um momento em que eu não estava bem. Neguinho estava querendo me matar, perdi a mãe, me separei, estava mal”, queixa-se.

Do agreste ao mangue

Antes de virar trovador da ressaca sentimental e tocador de samba pra burro, Otto foi criado no agreste pernambucano. O pai era promotor; a mãe, professora. Na pequena Belo Jardim, o menino galego cresceu rodeado por livros — descobriu cedo a arte das palavras. 

“Meus pais ganharam o disco ‘Canta Canta Minha Gente’, de Martinho da Vila. Eu me encantei pelas músicas, pela ilustração da capa feita pelo Elifas Andreato, pelos cantos de umbanda e pela percussão que constam nessa obra. Eu pirei”, diz ao podcast “MPB Unesp”.

Aos 21 anos, em 1989, o jovem artista passou dois anos em Paris. Quando a grana rareou de vez, batucou a percussão pelas ruas, no metrô e na porta dos bares. Nessa época, dividiu o teto com o trombonista carioca Raul de Souza. “Até montei um time de futebol”, lembra.

Quando voltou ao Brasil, estabeleceu-se no Rio e, em seguida, deslocou-se para o Recife. Aproximou-se de Chico Science e Fred Zero Quatro. Otto fez parte da pré-história do manguebit — foi percussionista da Nação Zumbi e integrou o Mundo Livre S/A.

Otto participou do clássico ‘Samba Esquema Noise’, de 1994

Gravou os dois primeiros discos do MLSA — “Samba Esquema Noise” (1994) e “Guentando a Ôia” (1996). Embora tenha sido importante a amizade que firmou com Science e Zero Quatro — a quem chama de ídolos —, o inquieto Otto precisava buscar sua sonoridade. 

“Tive a oportunidade de gravar meu primeiro álbum com o produtor Apollo Nove. Foi um processo de peito aberto”, conta o pernambucano, que fez “Samba pra Burro” (1998) sem banda e, com isso, abriu as portas para que a música eletrônica entrasse em suas canções. 

Confiava em sua intuição. “Eu nunca fui um cara tradicional, seja na vida ou na arte. Respeito os tradicionalistas, mas eu sempre gostei de pensar de forma livre”, revela, acrescentando gostar de sentir a criação. “Busco olhar as coisas de forma diferente.”

Por isso, reconhece seu papel na música brasileira. “Eu abri as possibilidades para o computador, as programações, mas com músicos tocando de forma orgânica. Desde aquela época até o meu trabalho mais recente, ‘Canicule Sauvage’, essas questões têm se mesclado muito bem.”

Otto estreou na carreira solo com o disco ‘Samba Pra Burro’, de 1998

As metamorfoses

Se “Samba Pra Burro” insere-se num contexto pós-Jorge Ben, “Condom Black” (2001) afina a linguagem da intuição. “Street Cannabis Street” foge da banalidade, sem haver, no entanto, adesão total à black music. O black, como diz o crítico Pedro Alexandre Sanches, refere-se à África, ao rito, ao sincretismo, aos orixás — tudo isso revestido de densidade e brasilidade. 

“Sem Gravidade” (2003), por sua vez, soa manso. Segundo Otto, é o disco da lua de mel com Alessandra Negrini. “Vai-se vendo como o canto e os arranjos sóbrios ocultam temas de conflito e perplexidade. Nota-se que três palavras tomam conta — ‘mente’ é dona de duas canções, ‘alma’ e ‘corpo’ governam três canções cada”, pontua Alexandre Sanches.

Veio então “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” (2009), obra que expurga o momento doloroso pelo qual o cantor-compositor passava. A capa, criada pelo artista visual Tunga, expõe o mofo humano. O cantor fala de suas fraquezas, em um romantismo mais próximo a Walter Franco do que a Roberto Carlos — rei da educação sentimental brasileira. 

“As pessoas ficaram descrentes do meu trabalho”, afirmou o pernambucano, em 2009, ao jornalista Marcus Preto. “Eu, que cheguei aqui de frente, com a Nação Zumbi, poderia estar morto hoje que não iam falar uma linha do que fiz nesses três discos passados.”

‘Ottomatopeia’ busca sonoridade moderna para aliá-la ao sabor do Brasil

Nos anos 2010, Otto lançou dois discos: “The Moon 1111” (2012) e “Ottomatopeia” (2017). O primeiro dialoga com o cinema de François Truffaut e o pós-punk dos Smiths. Ainda assim, mantém a síncope da música popular brasileira. Soa leve, dançante, solar. Já “Ottomatopeia” é saboroso — persegue uma sonoridade moderna para aliá-la ao pulso quente do Brasil. 

“Se eu falasse inglês, seria o cara mais conhecido do mundo. Pelas músicas que poderia fazer, opiniões que poderia dar”, declarou, em 2015. “Mas graças a Deus não falo.”

Hoje, refletindo sobre o peso de sua trajetória na música brasileira, Otto se enxerga um artista intenso, verdadeiro, original, honesto e guerreiro. “Sigo seu caminho pensando no futuro, em criar novas músicas, novos trabalhos”, declara o artista ao podcast da Unesp

Entre Odair José e Ronnie Von, Otto produziu no confinamento pandêmico o disco  “Canicule Sauvage” (2022), que marca reencontro com o produtor Apollo Nove. A sonoridade retrô, como observa Alexandre Sanches, evoca os filmes “2001: Uma Odisseia no Espaço” e “Laranja Mecânica”, dirigidos pelo cineasta norte-americano Stanley Kubrick. 

Ecoa-se, pois, o velho ensinamento de Fernando Pessoa: “Viver não é necessário. Necessário é criar”. Mas, pensando bem, viver e criar são indissociáveis. Otto se metamorfoseia. 

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