Mitchell e meio século de tristeza
Diário da Manhã
Publicado em 26 de junho de 2021 às 15:36 | Atualizado há 4 anos
De cabelos louros, fala delicada e gentil, musa para cantores do folk rock americano e tímida, Joni Mitchell representava a hippie por excelência. E precisou de três discos para ser reconhecida como uma grande compositora: “Song To a Seagull” (1968), “Clouds” (1969) e “Ladies Of The Canyon” (1970) são delicados, mas nada que chegue perto da preciosidade e clássico absoluto que a cantora criou no ano seguinte.
O quarto LP de Mitchell colocou há 50 anos a voz estranha da cantora na trilha sonora definitiva da contracultura. Com violões suaves e letras espirituais, o disco expressa uma urgência carregada em metáforas folclóricas familiares que, em vez de ser um homem na estrada, abre alas para uma mulher ir em busca de sua identidade feminina pelos atalhos da cultura pop pós-woodstock. “Blue” é um álbum sensível.
Em uma mistura musicalmente elegante que vai do romantismo ao estoicismo, o LP jogou luz sobre a música pop no início dos anos 1970 ao fazer uma inversão elegante da fantasia do mundo como uma deusa vadia. Mitchell amava os homens, porém os odiava com uma fina ironia perdoadora que personificava o gênero que Bob Dylan e Crosby, Stills, Nash & Taylor elevaram às paradas de sucesso. “Você é meu vinho sagrado/ seu gosto é tão amargo e tão doce”, declama a cantora norte-americana.
Anos antes, os Estados Unidos provaram o sabor avassalador do sucesso beatlemaníaco – e dos anos 1960 como um todo, documentado em “Rastejando Até Belém, de Joan Didion, e “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, de Tom Wolfe – quando Mitchell reuniu um grupo de músicos em Laurel Canyon, na Califórnia. Seu terceiro disco de estúdio, “Ladies Of The Canyon” (1970), fora gestado nessa vizinhança, que incluía gente como David Crosby, Graham Nash e Neil Young.
Mas Mitchell tinha musicalidade e calmaria singulares, melhor que a deles: com essas características, sintetizou o clima do movimento hippie, tornando-se uma das maiores compositoras da época e chegando a um patamar que lhe proporcionou elogios da crítica, como fez a jornalista da revista The New Yorker, Ellen Willis, na edição de fevereiro de 1973. “O quarto álbum de Joni Mitchell, “Blue”, me transformou de simpatizante em fã. Sempre gostei dela, mas nunca nos conectamos de verdade”, disse.
MELANCOLIA
Para celebrar meio século de tristeza, melancolia e fossa contracultural, a cantora lançou um EP com cinco faixas. Dentre as relíquias, as clássicas canções “Califórnia” e “A Case Of You” e gravações inéditas, raras, escondidas no baú do rock, como “Urge For Going” – cujo arranjo é acompanhado por instrumentos de cordas tocados. A novidade traz ainda uma versão de “A Case Of You”, mas com versos e tom distintos da versão original, gravada antes de a cantora bagunçar a afinação de seu violão e, com isso, criar para si um jeito único, inventivo e diferente de tocar folk.
Ou, como disse a próprio Mitchell, era uma maneira de “transmitir seus sentimentos com mais fidelidade”. Se sim ou não, o fato é que trata-se de um jeito mais semelhante com a versão final, ainda que menos polido, a demo na qual Mitchell lamenta a perda de amigos de Laurel Canyon durante uma viagem que ela fez à França. “É tão solitário andar na rua e vê-la cheia de estranho”, afirmou a rainha do folk.
Solitário, mas igualmente brilhante, “Blue” levou a revista Rolling Stone a taxá-lo como o terceiro melhor disco de todos os tempos, impressionado à época por escancarar uma artista no auge do lirismo e criando letras honestas, tristes e belas. Mitchell fala abertamente sobre seus relacionamentos em música como “My Old Man” e “The Last Time I Saw Richard”: são faixas nas quais subverte o preconceito sobre mulheres na composição. Ela foi tão transgressora e retratava os homens como problemáticos.
Não eram nem a fortaleza, tampouco o porto-seguro, como se vê largamente na cultura pop: eram, isto sim, motivo de melancolia, tristeza profunda, uns sujeitos lastimáveis. E, bem, isso era um legado que não poderia passar despercebido pela história do folk rock, muito menos da máxima da música enquanto trilha sonora da história.
E hoje, meio século depois do lançamento de “Blue”, é possível perceber que ele deixou resquícios por todo lugar, como em expoentes da música pop no século 21. Joni Mitchell é muito mais do que nossa conselheira amorosa. É uma cantora que precisamos ouvir para não achar que as mulheres ficam ofuscadas por Dylan e Crosby, Stills, Nash & Taylor. Mitchell, sem mais, é maravilhosa. (Marcus Vinícius Beck)