Mundo Livre levou manifesto mangue-punk ao Shiva
Redação Diário da Manhã
Publicado em 27 de maio de 2025 às 21:03 | Atualizado há 3 horas
Banda pernambucana celebra 40 anos de carreira com a turnê “Do Mangue ao Punk”, que se iniciou em Brasília, no dia 22 de maio. Da capital federal, os mangueboys seguiram para Goiânia e São Paulo, onde se apresentaram no Shiva e na Virada Cultural
Marcus Vinícius Beck
No palco, entre palhetada mangue-punk e groove esquema noise, a música ecoa no Shiva Alt Bar. A guitarra de poucos acordes e muita atitude ressoa distorcida — parece The Clash.
Não é apenas rock. É ação antifa, é manguebit, é samba, é soul, é funk, é rap, é poesia direta. É um riff desencapado que eletrifica meu corpo, um curto-circuito mangue na consciência proletária, é um sistema bateria-baixo-teclado que me alimenta tanto quanto oxigênio.
Meu parceiro, eu vi, assisti in loco esse show político-musical. Às 22h19, Fred Zero Quatro plugou o cavaco no amp. “Mundo Livre, vamo nessa”, vocaliza, ao mesmo tempo em que desenha os acordes em seu instrumento. “Fuleiragem/ Maresia/ Malandragem/ Regalia.”
Chegou a sexta-feira, 23 de maio, todos ambicionam música. Todos esperam algo, não tem jeito. No Shiva, soa suntuoso o mangueboy cantando “Free World”. “Salve, salve/ Salve, zero, quatro, salve/ Salve a música/ Salve, zero, quatro, salve/ Salve a música”, cantamos, em coro.

Selvageria punk, crueza hardcore, riffs barulhentos, bateria pronunciada. Entre os temas abordados, Zero Quatro ironiza o neoliberalismo em “Roendo os Restos de Ronald Reagan” e se posiciona contra a tirania do capitalismo na zapatista “Desafiando Roma”, que levou o MLSA ao México a convite do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Triste: ficaram fora do show.
As músicas de “Guentando Ôia” (1996) são um tabefe sonoro na cara da burguesia brasileira. Eis que, recobrando a consciência e me voltando para o palco, observo o vocalista. Ele lembra que o cantor Chico Science, da Nação Zumbi, pirou ao escutar “Computadores Fazem Arte”. “Chico quis gravá-la em ‘Da Lama Ao Caos’. Ela está em nosso segundo álbum”, afirma o mangueboy.
Ou seja, o diálogo entre Science e Zero Quatro foi pré-mangue. Até o mais disperso dos seres, nesse momento, se volta à figura que está ali no palco. Power chords acelerados indicam “um tema ainda atual”, como fala o vocalista e guitarrista. “Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiroooooo”, critica, entre comentários de bateria coordenados e acelerados.

Na cabeça, chapéu balde vermelho — seria em alusão ao Sport, o rubro-negro de Recife, o bravo Leão da Ilha? Correntes prateadas acentuam o despojado estilo punk-malandro. Jaqueta azul escura com listra marrom repousa em cima da camiseta amarela do Lakers. Bermuda de bolso e tênis indicam look adequado a quem jamais deixou Candeias (PE).
Zero Quatro retorna ao primeiro disco, “Samba Esquema Noise” (1994). “Minha vida mudou quando cantei a primeira frase”, avisa, tirando um som ondulante e modulado de sua guitarra Jaguar. “Sou eu transistor/ Recife é um circuito/ O país é um chip.” Explode a bateria e depois da virada o circuito chimbal-caixa-prato conduz o movimento rítmico.
Lançado pela Bengala Records, “Samba Esquema Noise” foi produzido pelo titã Charles Gavin e pelo rockman Carlos Eduardo Miranda. Modificou o percurso trilhado pelo sambista do esquema novo Jorge Ben e sua guitarra talhada em uma certa “África Brasil”. O cavaquinho, para o homem-caranguejo Zero Quatro, se aclimataria ao punk-mangue.
Esquematizou geral no samba noise — uma noite-manifesto na manguetown. Jorge Ben, ídolo de Zero Quatro & de todos os homens-caranguejo em cima do palco, recebeu homenagem deveras necessária em “Mexe Mexe”. O mangueboy conta que desconversava quando a gravadora Abril Music lhe pedia para o MLSA fazer releituras de outros artistas.

“Ele [Jorge Ben] nos conseguiu — não sei como — uma autorização para que gravássemos a música”, explica Zero Quatro, cuja canção está no repertório de “Por Pouco” (2000). Na sequência, o violão traz balanço jorgebeniano. A letra enaltece o molejo, porque a arte de mexer, diz o eu lírico, vem desde os tempos da pedra lascada. “Todo mundo mexia”, conta.
Sob influência de Jorge Ben, o MLSA fez o público entoar o hit “Meu Esquema”, de “Por Pouco” (2000), que une samba, bossa nova e bossa negra. Este cronista, apaixonado, chorou: “Ela é meu curso de anatomia/ Ela é meu retiro espiritual/ Ela é minha história.”
O MLSA interpretou ainda “Hey Hey, My My”, “a primeira que toquei em uma guitarra”, revelou Zero Quatro. Os mangueboys celebraram o The Clash, com uma versão abrasileirada para o clássico “London Calling” (1979). “Os primeiros discos fizeram a nossa cabeça”, relata.

Ecoa o baixo: me faz flutuar diante do palco. “Livre Iniciativa”, entre tantas canções tocadas nesta noite, põe em arrepios os pelos de minha pele emocionada. Estamos vivos. Estamos na manguetown. A música, libelo operário, fala da repetição laboral. O cavaco se mantém firme: “Trabalho, trabalho, novo/ Trabalho, trabalho, novo/ Trabalho, trabalho, novo.”
Karl Marx mexe-se morto-vivo no túmulo esquecido da classe trabalhadora. “Quem se importa de onde vem a bala?/ Qualquer dia tu acorda cheio/ Quem se importa de onde vem a grana?/Tu tem que ter o bolso cheio”, canta Zero Quatro, com o público em uníssono.
Foi o desfecho do político-show, a explosão do êxtase, o balanço esquema noise, foi o desenlace da viagem-espetáculo antifa, os discursos alienantes rebatidos, o “sem anistia” reverberado. Foi o “Mistério do Samba”, a “Dança dos Não Famosos”, o “Mexe Mexe”.
O Mundo Livre S/A é formado por Fred Zero Quatro (vocal, guitarra e cavaco), Daniel Filho (baixo), Xef Tony (bateria) e Léo D. (teclado). Que outra banda gravou com Noam Chomsky?
