Cultura

“Não faço poesia para ser aplaudido”

Redação DM

Publicado em 7 de março de 2016 às 21:08 | Atualizado há 9 anos

 

O goiano Gabriel Nascente está comemorando em 2016 a marca de 50 anos de atividade poética com a soma de mais de 60 livros publicados. Dono de uma das cadeiras da Academia Goiana de Letras e aspirando uma na Academia Brasileira de Letras, ele afirma, em entrevista polêmica ao Diário da Manhã, se sentir ignorado pelas universidades e marginalizado no cenário da poesia goiana, já que não fez universidade e se considera autodidata.

O poeta, que acredita que a poesia é fruto de um dom e que a função da literatura é ler o leitor, vê a internet como uma ameaça à linguagem e aos relacionamentos humanos e compartilha seu maior medo: que sua poesia seja esquecida após a sua morte.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Diário da Manhã: Como é a sua relação com a poesia?

Gabriel Nascente: Há 50 anos que eu tenho uma relação de amor e ódio com a poesia. O excesso de vibração poética em mim é tão grande que me dá angústia.  Eu costumo dizer que quando a poesia chega o Gabriel Nascente sai. Desde a publicação do meu primeiro livro de poesia, “Os gatos”, a poesia nunca mais pediu divórcio de mim. E eu maritalmente vivo com ela, convivo, brigo, xingo… Ela me chama de “debochado’, eu retribuo a ela: “escandalosa!”. Ela tia a roupa dentro da minha alma, eu fico pelado dentro dela, e por ai vai.

DM: Como o senhor percebeu que era poeta?

GN: Nos anos 60, na escola, sentava um rapaz ao meu lado que vivia declamando Castro Alves e eu odiava. Nessa época a nossa professora de português pediu para que fizéssemos uma redação de tema livre. Eu não sei dizer porque motivo ou onde fui buscar inspiração, mas eu escrevi um poema em prosa chamado ‘Nordeste’. Esse poema, no dia em que eu apresentei, foi lido em voz alta e aplaudido por toda a turma. Em seguida foi teatralizado pelos alunos  para o teatro da escola e eu também atuei, o que me rendeu retumbantes aplausos. A partir daí eu tomei gosto pela escrita. Devo dizer que meu primeiro livro, “Os gatos”, foi escrito sem eu nunca ter lido livro nenhum de literatura, exceto alguns trechos do livro didático de português.

DM: Quais são os seus poetas de referência?

GN: Tudo que cai na minha mão eu leio. Na minha adolescência meu poeta favorito era Augusto dos Anjos. Eu o lia por causa do cientificismo, da matéria deteriorada pelo pessimismo dele. Eu me identificava com ele. Depois dele e paralelamente eu li Edgar Allan Poe e Franz Kafka, que são da prosa, mas serviram de referência para a minha poesia. Eu gosto da estranheza da literatura de Kafka. Ele exerceu muita influência na minha formação literária. No avesso desse surrealismo eu lia apaixonadamente Saint Exupéry. Lá pelos meus 20 anos eu já era descobridor também de Vinícius de Moraes e da poesia dos anos 30 pra cá a dupla de poetas de maior predileção minha é Murilo Mendes e Jorge de Lima. Li muito também o arquiteto do verso João Cabral de Melo Neto.

DM: Em qual momento da sua carreira sua obra amadureceu e revelou de vez o poeta Gabriel Nascente? Qual foi o livro que revelou o que você realmente era como poeta?

GN: No meu livro “A torre de babel”, que conta toda a história da poesia no ocidente, pois ele me exigiu um estudo muito grande. Desde os vedas indianos,a Grécia antiga, a origem dos deuses, passando por Homero e pelos principais vultos da filosofia Ateniense, até chegar em nomes como Shakespeare e culminar na boemia de Vinícios de Moraes, no Brasil. Esse livro deu uma amostragem do que eu era capaz de fazer na poesia.

DM: Como se dá o seu processo criativo? Você escreve todos os dias?

GN: Eu escrevo liturgicamente todas as manhãs. E leio sistematicamente também. Eu escrevo à mão e em pé. Tenho toneladas de recortes de cartolina em casa. Levo alguns comigo pra onde eu for e enquanto ando vou escrevendo. Quando chego em casa transcrevo para a máquina de escrever.

DM: Qual a função da literatura?

GN: É ela ler o leitor, não o contrário.

DM: E como seria isso? Como a literatura pode ler o leitor?

GN: Quando a literatura lê o leitor, o leitor já está dentro dela. Essa é a magia.

DM: Poeta nasce poeta ou poeta se forma/ cria como poeta?

GN: Não, não se cria poeta não. O poeta é detetor de nascimento desse dom.

DM: Então poesia é dom?

GN: Sim, poesia é dom. Pra mim, por exemplo, foi um sonho que me chamou para a poesia. Três dias antes do falecimento do meu pai, eu era menino, eu tive um sonho no qual três figuras trajadas de branco apareciam pra mim. Uma delas me puxava a orelha e me sacudia me chamando pra literatura. Eu nunca contei isso em lugar nenhum do mundo.

DM: Mas a poesia não é técnica? Não é uma construção lógica sobre a linguagem? Como isso não pode ser aprendido?

GN: Eu não seria tão radical. Eu não chegaria nas fulminâncias do extremo. Mas se você pegar um gramático, grande conhecedor da língua, e colocar ele pra escrever um poema, ele não vai dar conta.

DM: A internet é ameaça à poesia?

GN: A ciranda dos poetas está minguante. Isso é sério. A poesia não pode morrer não. Nós somos sobreviventes esquecidos pelo naufrágio. A globalização através da internet é um naufrágio catastrófico em todos os sentidos do comportamento humano, porque transformou o mundo em um imenso deserto. A globalização, a internet, é a morte da linguagem. As pessoas têm que exercitar o intelecto. Atualmente está surgindo a geração dos não pensantes.

DM: Então a poesia vai acabar?

GN: Não, não acaba. Porque computador nenhum do mundo será ensinado a escrever poesia.

DM: A poesia é necessária?

GN: Absolutamente. O mundo precisa um milhão de vezes mais de poesia do que de pólvora.

DM: Tem algum poema ou livro que você se arrepende de ter publicado?

GN: Apenas um opúsculo chamado “Exilados do sol” que eu publiquei em parceria com um poeta de Belo Horizonte que foi fruto meramente ‘cervejal’. Daí eu salvaria só dois poemas.

DM: Qual seu maior medo?

GN: São dois: não saber a hora de parar de escrever, como acho que aconteceu com Drummond, e que a minha poesia morra junto comigo e vá para o meu caixão.

DM: Há previsão de publicar mais livros?

GN: Está saindo agora o meu livro comemorativo que se chama “Cinquenta anos de poesia”. E além disso tenho também material pra publicar mais outros livros.

DM: Por que você escreve?

GN: Eu escrevo porque realmente se eu não o fizer vai me faltar ar.

DM: Como você é visto no cenário da poesia goiana?

GN: Sou marginalizado na poesia de Goiás. É ruim falar isso, mas eu sinto que sou descriminalizado e isso é uma grande verdade. Todo mundo que me conhece sabe disso. Quer uma prova contundente? Esse é o ano dos meus 50 anos de poesia. Eu merecia alguma coisa? De nenhum canto em Goiás eu recebi nada. Também não estou cobrando nada, pois não sou melhor do que ninguém.

DM: Quem é o público que lê Gabriel Nascente?

GN: Meu público é humilde. É o açougueiro, o alfaiate, o marceneiro, o pintor de parede, as prostitutas…

DM: E os intelectuais? Os que estão dentro da academia, das universidades, esses não leem sua poesia?

GN: Uma das coisas que mais me discrimina em Goiás são as universidades. Eu sou cruelmente apagado. As universidades não me citam e nem me convidam para nada. Não participo de nada. Sou olimpicamente, covardemente, ignorado pelas universidades. Nunca me convidaram pra fazer uma palestra, nem para participar de comissão julgadora de concursos de poesia. Não sou lembrado pra nada. Eles não me engolem. Mas eu não faço poesia para ser aplaudido.

DM: Por que a universidade ignora sua poesia?

GN: Acho que me consideram analfabeto porque eu não fiz universidade e sou autodidata.

DM: Para terminar: como nasce um grande poema?

GN: Você quer saber como nasce um grande poema? Vou te ensinar: o grande poema nasce da antiliteratura.

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