Não tem flagrante: 10 anos sem Bezerra
Redação DM
Publicado em 18 de janeiro de 2016 às 22:45 | Atualizado há 5 meses
Na atualidade, a obra do sambista Bezerra da Silva vem agregando cada vez mais adeptos, chegando às novas gerações devido à franqueza e ao realismo de suas letras. Elas tratam principalmente do dia-a-dia em comunidades periféricas. Bezerra aborda conflitos sociais como preconceito “de classe”, opressão e exploração social, “malandragem”, limites da lei, uso de maconha (e outras drogas) e “caguetagem”. Nascido em 1927 na cidade de Recife, teve contato com a pobreza e com a música desde a infância. Foi para o Rio de Janeiro ainda adolescente em um navio clandestino. Consolidou-se como um nome forte do samba, vendendo cerca de 10 milhões de discos.
“Essas músicas que eu canto são de compositores que são servente de pedreiro, camelô, outro tá desempregado, outro limpa o carro da madame e a mulher é a cozinheira”. Bezerra da Silva fez essa afirmação ao semanário O Pasquim, em 1985. A naturalidade com que o cantor tratava temas-tabu (como autoritarismo da polícia, críticas à parcialidade econômica da justiça e consumo de maconha), acabou criando uma máscara maldita sob sua memória. Tal máscara era reconhecida pelo próprio. “Tenho fama de que sou criador de caso, mal-educado, cantor de bandido. Só não me chamaram de bicha e ladrão. Vivo num país em que é proibido falar a verdade”.
A aproximação da obra de bezerra ao uso da cannabis já chegou à academia. A monografia “A fumaça e o feitiço: maconha e Umbanda em Bezerra da Silva”, defendida por Mauro Leno Silvestrin na Universidade Federal do Paraná em 2008, aborda exatamente a estigma de devasso atribuído ao cantor pela escolha de seus temas. “Embora tenha declarado inúmeras vezes que não utilizava esta erva, sua aproximação com o tema foi muitas vezes utilizada para desqualificar sua obra. Sua fama de maconheiro e cachaceiro, segundo ele, se devia ao fato de ‘quem tem boca falar o que quer e quem tem ouvidos escutar o que não quer’”.
Os anos 80 trouxeram as canções mais populares entre os jovens da década seguinte. Juliano Nogueira, de 19 anos, é fã do trabalho de Bezerra. Para ele, o cantor “fala de temas sérios, de deixar qualquer pai e mãe conservadores desesperados. Ao mesmo tempo ta rolando um samba alegre no fundo. É muita esperteza”. Dentre a valiosa safra de músicas canábicas do compositor, a mais clássica ‘Malandragem dá um tempo’, foi lançada em 1986, no disco ‘Alô malandragem, maloca o flagrante’. Segundo a dissertação de Mauro Leno Silvestrin, uma versão da banda Barão Vermelho da canção “a tornaria famosa entre a juventude dos anos 90”.
Os famosos versos de ‘Malandragem da um tempo’ dizem “Vou apertar, mas não vou acender agora. Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora. É que você não está vendo que a boca tá assim de corujão. Tem dedo de seta adoidado todos eles afim de entregar os irmãos”. Silvestrin arrisca uma interpretação da música. “Neste samba, que Bezerra diz ser um alerta, o personagem adverte ao malandro que a área está cheia de delatores, e que só vai acender seu baseado quando estes forem embora”. A delação dos companheiros é outro tema bastante marcante na obra de Bezerra. Para ele, cagueta não tinha vez mesmo.
Em outra canção bastante popular chamada ‘Se Leonardo da Vinte’, Bezerra contesta a diferença de tratamento policial reservado ao usuário de maconha em relação à sua classe social. Os versos principais trazem a seguinte indagação: “Se Leonardo dá vinte Por que é que eu não posso dar dois?”. Silvestrin explica: “Ao contestar o delegado sobre o porquê de sua prisão, uma vez que há muita gente, a exemplo de Leonardo, que consome mais maconha que ele, o personagem recebe como resposta que Leonardo, por ser rico e poderoso, tem imunidade para fazer o que quiser, mas que ele, pobre e favelado, não dispõe destas premissas, e por isso responderá por seu delito”.
Últimos dias
Os últimos anos de Bezerra da Silva foram dedicados à Igreja Universal do Reino de Deus. Converteu-se ao segmento neopentecostal em 2001. No ano de sua morte, em 2005, teve seu último trabalho lançado de forma póstuma. ‘Caminhos de luz’, seu disco evangélico, foi preparado durante os últimos anos de sua vida. A conversão religiosa não impediu que Bezerra contribuísse com outros artistas da música “do mundo”. Ainda em 2005 participou de composições com Planet Hemp e O Rappa. Faleceu no dia 17 de janeiro devido a complicações pulmonares. Hoje, 10 anos depois de sua morte, sua popularidade só aumenta.