Nos olhos do crepúsculo
Redação DM
Publicado em 16 de julho de 2016 às 03:05 | Atualizado há 9 anosHoje tudo está chato. Minha vontade é estar no meio de um buritizal ouvindo o canto dos pássaros-pretos. Mas estou no meio de uma selva de asfalto, concreto e fios, no alto do Setor Bueno. Pois é aqui que estou. Às cinco da manhã um maluco toca a buzina estridente pedindo para o guarda abrir o portão do prédio. Nem sei se ele quer entrar ou sair. A pressa pode ser por doença ou algo mais urgente. Ou, simplesmente, um bêbado chegando de madrugada sem o controle remoto do portão eletrônico. Mas, e daí? O que ele tem a ver com isso? Ele nem sabe que a sua buzina me acordou de um pesadelo. Aí vou percebendo que eu sou o chato. O mundo continua o de sempre, intolerante cruel e desprezível. E eu vou nesse embalo da modernidade com a chatice das repetições.
Pensar nessas coisas incomoda mais do que um celular tocando num filme de Hitchcock. Na madrugada, em frente à janela, vejo uma montanha de prédios indiscretos à paisagem do cerrado. Não há sertão a minha volta. Ah, que saudades de estender a vista pala imensidão das veredas. Corro para a outra janela da sala. Deste lado as construções são baixas. Vejo as luzes brilharem no chão úmido com a água do vazamento de um cano rompido na madrugada. Reparo ruas, reparo casas e minhas olhos míopes perscrutam o movimento da cidade que começa a se despertar.
Percebo que sou um caipira preso nessa Goiânia frenética. Tenho vontade dar uns cascudos na cabeça de quem plantou prédios, um ao lado do outro, no Setor Bueno. Penso que o pior lugar de Goiânia para se morar é no Setor Bueno. Idiota de quem o inventou cheio de arranha-céus de narizes arrebitados. Porque não planejou prédios baixos para que os moradores pudessem ver o sol nascer. A lua nesse lugar horrível só aparece acima dos prédios. A impressão é a de que a lua do Setor Bueno é diferente de outros lugares; luze no zênite.
Aqui o meu olhar não vê o horizonte do cerrado da minha infância. Os olhares no Setor Bueno são verticais, acima da cabeça. Vou me acostumando a andar sempre de cabeça levantada. Talvez essa seja a razão da minha chatice. A culpa, então, é do Setor Bueno? Sei lá. Só sei que não devo olhar as pessoas do alto. O certo é baixar o queixo e ver o próximo ao nível do olhar.
Abro os olhos para ver o mundo. Penso e trago de volta as imagens das belezas da paisagem de Goiânia de outros tempos. O risco é a gente esquecer de suas belezas naturais. Sim, porque quando a gente fecha os olhos diante do sol esquece que ele existe. O sol, a lua, a terra e tudo que nela existe não buscam fórmulas complicadas para existirem. São simples porque são o que são, sem invencionices. Ao contrário de nós.
Deus fez tudo com uma precisão impressionante. E a lei da compensação dos nossos dias e de nossas neuras é quando vemos o mundo com um olhar colorido de uma flor do campo. Todos os dias nascem novas árvores e novas flores sobre a terra. Tudo é tão real que a maior dúvida é saber quando tudo começou. Onde está a ponta do durex?
Para curar chatice de cidade grande o melhor é uma rede cearense azul – da cor do céu – a descansar na sacada de um apartamento projetado por um maníaco construtor de caixas de pombos. Ah, então ele deve saber como construir casinhas em cima de árvores. Deito na rede de alma baiana. Na rua quase deserta ouço gargalhadas de pessoas que talvez venham de uma festa. O som de um salto-alto batendo no asfalto duro de um dia que termina para uns e começa nos olhos do crepúsculo.
São ruídos de quem nem sabe que eu existo. Nada disso muda a impressão de que hoje amanheceu chato. Tudo pode melhorar se o Vila Nova ganhar o jogo em Pelotas.
(Doracino Naves, jornalista; apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, PUC TV Goiás, sábado, 12h30. Reprise, domingo, 20h)