O sintomático racismo no cenário musical goiano
Diário da Manhã
Publicado em 20 de janeiro de 2017 às 21:38 | Atualizado há 8 anos
O racismo, denunciado há décadas por grupos de movimentos negros enquanto componente estruturante das desigualdades no país, ao contrário do que tem sido sustentado pelos interesses da intelectualidade branca da elite e classe média brasileiras, foi confirmado apenas recentemente por institutos de pesquisa nacionais, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e, por organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU). Não seria necessária, entretanto, essa confirmação institucional, dado que a maior parte da população brasileira sabe na pele do que se trata há séculos.
Além do passado de escravização negra, relativamente recente, o Brasil buscou e ainda busca esconder a parcela negra de sua história, cultura e população por meio da construção de ideais de embranquecimento, apoiando-se na mestiçagem para tentar alcançar uma sonhada branquitude nacional. Dessa forma, com base nessa mítica especulação de união, surge a mitologia de comunhão e sociedade harmônica, na qual os cidadãos teriam aprendido conviver entre si, aparentemente sem conflitos.
Não obstante, tal premissa se contrapôs à realidade em que a estrutura racista, ideologicamente camuflada, vem penalizando indivíduos que, embora possam ter em sua árvore genealógica diferentes ancestrais, continuam sendo, em razão de sua fenotipia, lidos socialmente como negros, em detrimento dos que puderam ser contemplados pelos privilégios concedidos a sua branquitude.
O episódio relacionado ao conteúdo racista da canção intitulada “Samba Branco” – que recentemente gerou reação de pessoas, comunidades negras e movimentos politizados de Goiânia – revelou alguns sintomas desse racismo nas artes e na sociedade local, que, segundo estudo do Instituto Mauro Borges, ligado à Secretaria de Gestão e Planejamento (Segplan), tem 60,22% de sua população urbana composta por pessoas negras.
A cena principal do episódio para o qual se chama a atenção é a naturalização do racismo. A resposta apresentada pela cantora foi uma carta à comunidade, postada em sua página do facebook, dizendo que sua intenção foi, na verdade, elogiar as mulheres negras, principais ofendidas pelo conteúdo, sugerindo que as críticas lhe foram feitas em função de má interpretação da letra. Ou seja, as mulheres negras que sentem-se ofendidas por um “Não quero a crioula no samba/ Empurra a crioula pra lá / o samba vai ficando branco”, é porque têm ou tiveram problemas interpretativos com os elogios que quis ofertar um singelo e benevolente eu-lírico, na opinião de amigos e fãs da cantora, ao empurrar as mulheres negras para embranquecer a música.
Muitos dos músicos e artistas goianos da MPB e do samba aparecem na postagem reforçando estereótipos do racismo. Em uma delas, em seus comentários de apoio à cantora, uma personalidade local diz que o melhor cantor de samba do Brasil é Chico Buarque, “loiro de olhos azuis”.
Ao ser indagada sobre o porquê de artistas goianos negros quase não aparecerem no cenário público da música local, a personalidade é taxativa ao afirmar que esses artistas não são escolhidos pela cor da pele, mas sim por seu talento e notoriedade – o que conduz a interpretação a um ato falho discursivo em que não há profissionais negros talentosos e qualificados a ponto de obter notoriedade na cena local. Significa que o universo artístico e cultural goianiense também não é exceção na realidade de exclusão, hierarquização racial e manutenção do racismo.
Faz-se necessário saber: o samba tem, sim, em sua história a vinculação às comunidades negras. Uma figura de destaque é Tia Ciata, a mais conhecida dentre as tias baianas, ou tias do samba – mulheres que davam início aos trabalhos abrindo seus terreiros onde as festas do samba aconteciam. Como afirma a pesquisadora Jurema Werneck em “O samba segundo as lalodês: mulheres negras e cultura midiática”: “O samba era produção coletiva, em roda, de mulheres e homens. E, grande parte das escolas de samba foram fundadas em torno de mulheres – muitas vezes lideranças de religiões afro-brasileiras, especialmente Umbanda e Candomblé”.
O samba, ao ganhar adeptos com o passar dos anos, vai incorporando interesses mercadológicos e é também incorporado a projetos nacionalistas, pautados no ideal de miscigenação e embranquecimento conduzido por intelectuais, políticos e outros segmentos protagonizados por pessoas interessadas na criação de uma identidade nacional branca e elitista; quase europeia. Neste sentido, o samba deixa de ser negro para servir ao discurso de brasilidade e nacionalização da cultura, que fortalecia o culto ao mito da igualdade racial e à manutenção do racismo.
Nesse processo de embranquecimento cultural, urge observar o panorama da cena musical do samba e MPB goiano e goianiense, restrita a grupos prestigiados, principalmente considerando a estrutura social articulada com o racismo. Ao visualizar a ausência de artistas negros nos espaços de notoriedade da música local, é preciso perceber que isso não significa que os mesmos não existam e tampouco que não possuam talento, mas que a música goianiense não é exceção na realidade racista do país.
Como sintomas disso, foram também identificadas nos comentários em defesa da cantora manifestações explícitas da naturalização de valores racistas, como nas falas em que aparece, por exemplo, a sobrevalorização da branquitude – “Cuidado Grace, você é branca, de olhos claros e bonita –, e assim como interpretações que justificam outras letras análogas, reivindicando, a partir da existência destas, o direito de se ser/permanecer racista – Eu tô rindo. A Elis cantou “nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia?…”; Elza Soares “O negrinho gostou da filha da madame…”. Nos carnavais de rua “O teu cabelo não nega”, “Olha a cabeleira do Zezé”. “Deixem… cantar. Se orgulhem da maravilhosa cantora que vocês têm. Beijo no coração de todos. Amo Goiânia” –, além de percepções equivocadas e desastrosas sobre racismo reverso (ação historicamente impossível) – “Vocês [negros] é que estão sendo racistas.
É possível concluir, portanto, que a parcela da sociedade que defende letras como a de o Samba Branco, e seus compositores, é a mesma que se acostumou com o racismo, a ponto de se inspirar a fazer samba e aplaudir com eloquência a pejoração, desqualificação, invisibilidade e a morte simbólica e social de pessoas negras da sociedade. O racismo à brasileira pode ser também musicado, porém nada poético.
(Antonilde Rosa, graduada em Canto Lírico e mestranda em Canto – UFG,Márcia Daniele de Souza, mestre em História – UFG,Priscila Martins, graduada em Letras e mestre em Direitos Humanos – UFG
As autoras são integrantes do Coletivo Rosa Parks – UFG e pesquisadoras em Raça, Gênero e outras interseccionalidades)