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Odair José chega aos 75 anos como cronista dos sentimentos brasileiros

Taxado de forma pejorativa como brega, goiano deu de ombros para vertente elitizada da crítica e criou primeira ópera-rock do País

Já transcorria o ano de 1977, a ópera-rock “O Filho de José e Maria” arranhava a superfície do catolicismo e isso fazia toda diferença, para Odair José (nesta quarta, 16, 75 anos), para o mercado fonográfico que não mais lhe quis, como viria a saber assim que o bolachão chegou às lojas. Hoje, ok, os dois - Odair e o disco - são cults. Mas imagine o escândalo apresentado na primeira música, “Nunca Mais”: “sou o que resta de uma noite esquecida/ noite de festa e razão dessa vida”.

Do princípio ao desfecho, alude-se a Jesus Cristo, retratando-o como pessoa comum. Uma das músicas que mais bafafá gera no disco é “O Casamento”, em cuja letra o compositor goiano indaga se Jesus não teria nascido antes de José e Maria se unirem nas conformidades pregadas pela lei divina. Falar sobre o maior personagem do cristianismo tinha se tornado febre desde “Jesus Christ Superstar”, disco lançado em 1971 pelo músico Andrew Lloyd Webber, com letras assinadas por Tim Rice - parou na Broadway, se você quer saber.

Odair sabia o que estava fazendo. Só que a crítica torcia o nariz. Tárik de Souza execrou a guinada do morrinhense em “O Filho de José e Maria”, álbum gravado sob direção artística de Durval Ferreira e merecedor do status cult lhe negado, seja pelo requinte instrumental ou pelos versos épicos. Para o decano do jornalismo musical, Odair pensou que “podia mudar de gênero como quem troca de camisa”, como escreveu no semanário “Opinião”. Tárik continuava, na verdade, achando o goiano “desajeitado, incompetente violonista e cantor”.

Obra-prima

“Anos depois, o disco é visto como um dos mais importantes da discografia brasileira, tanto pela qualidade quanto pela ideia do projeto. O tempo é sempre o melhor crítico e hoje posso afirmar que o meu trabalho, com toda certeza, teria uma importância bem menor sem esse disco”, disse o artista, numa entrevista ao Diário da Manhã, na ocasião em que lançou o disco “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio”, em 2019. “O meu trabalho sempre foi falar de temas que vão de encontro às necessidades do momento em que estou vivendo.”

Autor dos hits “A Noite Mais Linda do Mundo”, “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar” e “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, Odair não queria clonar Roberto Carlos. Nem fazer música para viúvos e viúvas da Jovem Guarda. Em 1973, o presidente da Phillips no Brasil, André Midani, teve a ideia de realizar um grandioso festival, o Phono 73, com apresentações em duplas ou solitárias. A mais polêmica foi o dueto entre o “rei das empregadas” e Caetano Veloso, cérebro por trás do tropicalismo e, àquela altura, com já “Transa” na bagagem.

Caetano queria provocar o etilismo estudantil, como fazia desde 68. Com Odair reconhecido como brega, pelo sucesso que fazia entre o povão, cantando sem literatices o amor perdido e os desejos sexuais, a empreitada foi fácil. Aos quatro ventos, para desespero total da patrulha cancioneira, o que tocava nas rádios era aquilo responsável por identificá-lo como “músico de puteiro”. Sim, não lhe interessava o que os outros pensassem e, bem, o ídolo tropicalista escolheu entoar junto de Odair José o hino sobre a condição das prostitutas.

Por causa dele, o cantor goiano caiu em descrédito e foi rebaixado à artista de zona, num juízo de valor com viés preconceituoso. “Minha música ficou conhecida como música de puteiro, mas não tinha puteiro que tocasse mais minha música do que a de Roberto Carlos”, defendeu-se, ao conversar com a revista “Cult”, prestigiada publicação brasileira que versa sobre cultura. Ao DM, anos depois, Odair José delimitou as pessoas que lhe taxam como brega em duas categorias: ou elas são mal informadas ou, pior, são mal intencionadas.

Hoje, para todos os efeitos, o artista é admirado por Arnaldo Antunes, Paulo Miklos e Otto, músicos que lhe trouxeram à tona nos anos 2000. E se aproxima do rock com duas sólidas obras, “Ratos” (2016) e “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio” (2019), ambas pela Monstro Discos. As letras possuem cunho social e político e, assim como ele fez durante os anos de chumbo da ditadura militar, se posiciona e defende sua visão de mundo. Com riffs que lembram Keith Richards, a pegada clássica ganha força com músicos de apoio afinados.

Ser político

O repórter viu no Goiânia Noise, em 2019, no Martim Cererê: Odair botou pra f... Guitarras e gaita, blues e rock, Beatles e Stones, numa musicalidade refinada. Solos de guitarra, groove no baixo, sopro dos metais. Ouvidos zunindo mensagens políticas. De progressista e lulista, o mesmo se viu no Festival do Futuro, em Brasília, em 1° de janeiro: Odair José interpretou a ressignificada “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, cantada por petistas como hino que expressava contrariedade à prisão pela Lava-Jato de Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo o pesquisador Diogo Direna Fonseca, o público de Odair se renovou. Ele foi motivado pela juventude e, sem esconder os excessos com alcalóides andinos e birinaites nas noites varadas no Baixo Leblon, o artista conseguiu ser enfim ressignificado e ter sua obra reavaliada. “O ‘jovem’ é o tempo presente que ele quer próximo”, pinça Diogo, na tese “Entre o Brega e o Rock: a Ressignificação da Música de Odair José”, defendida na UFF. “Eu faço música desde os sete anos de idade e posso aceitar que as pessoas não gostem daquilo que faço, mas desrespeitar não”. E quer saber, Odair, faz muito bem.

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