“Paris, Texas” retrata desilusão com sonho americano
DM Redação
Publicado em 24 de setembro de 2025 às 19:27 | Atualizado há 1 dia
Marcus Vinícius Beck
À espera — não sabemos ainda muito bem de quê —, o pobre diabo Travis vaga desmemoriado pelo deserto dos Estados Unidos. Está cercado por pequenas fendas no Texas, ao som da slide guitar de Ry Cooder que remete a um blues de Willie Johnson.
É um vazio arenoso, uma desesperança, um desengano. É “Paris, Texas” (1984). Travis vai caminhando, com uma gravata polida pela areia texana e um surrado boné de beisebol na cabeça: já não foge. Ou foge? Vem o irmão, resgata-o, leva-o para sua casa em Los Angeles.
Não é fácil, porém. Walt vive com a esposa, Anne. Juntos, cuidam de Hunter, filho de Travis, que se reconecta com o pai. Quando reconstroem os laços desatados da relação e manifestam uma forte amizade, o homem entra no carro e pega a estrada em busca da ex-mulher.
Eis a Odisseia: Jane não é Penélope. Assim como Travis não é Ulisses. Ela tampouco é Molly Bloom. E muito menos ele é Leopold Bloom. Após perambular pelos EUA, Harry Dean Stanton, o nosso herói Travis, reencontra sua ex, Nastassja Kinski, a nossa heroína Jane.
Para o filósofo Friedrich Hegel, ninguém está parado no tempo. O pensamento dialético hegeliano acredita que a sociedade, os indivíduos e a história se movem em direção à transformação. A realidade, segundo Hegel, estaria submetida a um afluxo infindável.
Temos, em “Paris, Texas”, o universo wendersiano por excelência: um sujeito atarantado, o deserto interior e exterior, os modos erráticos. No fundo, pensando bem, o filme revela o desengano — com o sonho americano, com o cinema de arte, com a ideia de pertencimento.
Wenders filosofa: “Se não estivermos sozinhos, nunca seremos capazes de adquirir esta forma de ver, esta completa imersão naquilo que temos diante dos nossos olhos, em que já não é necessário interpretar, mas apenas olhar”, refletiu o cineasta numa entrevista.
Nascido ao fim da Segunda Guerra, em Düsseldorf, na Alemanha, Ernst Wilhelm “Wim” Wenders cresceu numa cidade destruída. Começou a filmar nos anos 1970, tornando-se expoente do Novo Cinema Alemão ao lado de Werner Herzog e Rainer Werner Fassbinder.
Com sua trilogia de road movies — “Alice nas Cidades” (1974), “Movimento em Falso” (1975) e “No Decurso do Tempo” (1976) —, o diretor volta-se a temas que lhe seriam centrais em “Paris, Texas”: indivíduos em movimento, em busca de conexão e atrás de mudança.
Veremos, portanto, que esses filmes são uma ansiosa espera, por parte do cineasta, para filmar nos EUA. Mas “Paris, Texas”, logo em seu título, revela a desilusão se materializando na falta de sentido da vida capitalista e nos afetos que se perderam pelo caminho.
Há quem radicalize, dizendo o seguinte: Wenders marcou tanto o cinema independente dos EUA que, desde então, parece empenhado em refazer “Paris, Texas”. Será? “Dias Perfeitos”, por exemplo, revê a ideia de perfeição, cujo protagonista, Hirayama, se satisfaz com arte.
Mas isso — talvez um leitor atento me diga, se aqui chegar — não é um retorno ao que de melhor fez o cineasta? Prefiro crer, no que responderei eu, que se trata de um debate mais aprofundado, de forma que as imagens, lá e cá, estejam a serviço de análises sociológicas.
Aos cineastas brasileiros Walter Carvalho e João Jardim, Wenders disse que usaria óculos mesmo que não sofresse de nenhum problema visual, já que, segundo ele, a armação serve para protegê-lo do excesso de imagens. Não é algo estético, mas profundamente ético.
No cinema, conforme os filósofos Bia Antunes e Luame Cerqueira, enquadra-se para criar sensação, não apenas para dar forma ao mundo. Fotografar é, como não se cansa de dizer Wenders, pintar com luz. Nesse sentido, Robby Müller soa magnífico em “Paris, Texas”.
Pelas lentes de Müller, assistimos a Travis reencontrando Jane no clube onde esta trabalha. Do outro lado do vidro, ela não reconhece a voz daquele homem. Ele a vê, mas é como se não visse. O filme se encerra com Jane e Hunter no quarto de um hotel em Houston.
Ao som de Ry Cooder, Travis vaga sozinho — dessa vez, não pelo deserto, e sim pela cidade. “Durante as filmagens, é raro você pensar que está criando algo que vai ser bem-sucedido. Ficamos sem dinheiro. Ficamos sem roteiro”, afirmou Wenders ao “The Washington Post”.