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Por que ainda amamos os Beatles?

Diário da Manhã garimpou dissertações e teses em duas das principais universidades públicas do País para entender fascínio em torno do grupo britânico

Beatles atravessam rua em Londres durante sessão de fotos para capa de ‘Abbey Road’, em agosto de 1969 – Foto: Ian MacMillan Beatles atravessam rua em Londres durante sessão de fotos para capa de ‘Abbey Road’, em agosto de 1969 – Foto: Ian MacMillan

Tem um corredor de sonhos iluminando nossas cabeças, uns acordes ousados saindo da caixa de som, uma harmonia tornando tudo válido: “Blackbird”. Quem entre nós, afinal, é capaz de segurar as lágrimas enquanto McCartney está pedindo pra que peguemos nossas asas quebradas e aprendamos a voar, por toda vida, to-da-vi-da, todavia? Há que se ter uma canção desses caras tocando em cada momento da vida, se for pensar bem.

Pensei, digo, penso bem. Afirma o filósofo Jean-Paul Sartre que a música existe por si mesma, não remete a nada que esteja fora dela e a função do artista seria converter os sons emitidos em objetos imaginados por nós. A imaginação está marcada nas melodias e nos versos construídos pelos Beatles, e também está documentada no plano da objetividade, com dissertações de mestrado ou teses de doutorado na UFG e UFRJ, dentre outras. Pesquisas foram mapeadas pela reportagem do Diário da Manhã nessas instituições de ensino.


		Por que ainda amamos os Beatles?
Da esquerda para direita: John Lennon, George Harrison, Paul McCartney e Ringo Starr. Foto: Robert Freeman


Uma delas, desenvolvida na Faculdade de Informação e Comunicação, da UFG, analisa público que frequentou histórico show do beatle Paul McCartney, no estádio Serra Dourada, em 2013. De autoria da publicitária Luana Lima, o trabalho contextualiza o fenômeno da beatlemania, nos anos 1960, passando por discos como “Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band” e “Abbey Road”, até chegar ao concerto do lendário baixista na Capital goiana. Ela percebeu que muitos jovens ainda se interessam pela música dos Beatles.

“Haviam jovens acampados nas imediações do estádio já na madrugada da segunda-feira, dia da apresentação, para garantir estar mais perto do ídolo. Inúmeros fãs, entre eles muitos beatlemaníacos declarados, que não passavam dos 30 anos, estavam em estado de êxtase, sem acreditar que veriam de perto um ex-beatle”, descreve a pesquisadora, no trabalho intitulado “Referências Musicais do Passado entre a Juventude Atual”. McCartney tem 15 milhões de ouvintes mensais no Spotify, enquanto os Beatles ultrapassam os 35 milhões.

Nosso interesse por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr é tanto que o cineasta oscarizado Sam Mendes obteve sinal verde para um ambicioso projeto. Segundo o diretor britânico, a ideia consiste em produzir quatro filmes de ficção, um para cada membro do grupo, ou seja, todo percurso - desde os dias malucos em Hamburgo até o comunicado de Paul anunciando a ruptura - será narrado pela perspectiva de cada um dos integrantes. Já são contabilizados 18 filmes sobre a banda. Até agora, o melhor é “Get Back”. Veja trailer abaixo:

Assinado por Peter Jackson, a série de três partes proporciona horas de deleite aos fãs. As imagens, inéditas, regozijam o público: vemos Lennon menosprezar Harrison, que fica irritadiço, como ficaria qualquer pessoa que levasse algo tão bom quanto “All Things Must Pass” - e sequer fosse reconhecido pelos companheiros por isso. Starr fica interagindo com a câmera, segurando as baquetas e observando tudo à sua volta. Nos últimos meses de 1968, McCartney queria voltar aos shows. Contudo, daria-se por satisfeito se, no estúdio, gravassem ao vivo.

“Get Back” (Disney +) exibe momentos emocionantes. Preenche vácuo filmográfico, pois não se pode dizer que Lennon gostou quando o doc “Let it Be”, de 1970, saiu junto com o derradeiro disco, de mesmo nome. “Uma merda mal gravada”, esbravejou. McCartney o achou estranho, também. Starr atribuiu ainda ao elepê “falta de alegria”. E Harrison, a essa altura, sabiamente, andava mais preocupado com “All Things Must Pass”, um elepê triplo que demonstra o talento de um compositor fustigado pela dupla Lennon-McCartney.


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George Harrison: "Essa foi a grande vantagem da separação". Foto: Facebook/ Arquivo


Vantagem

“Essa foi a grande vantagem da separação”, disse o guitarrista, nos anos 2000. Na sua cabeça, ouvia o pianista Ray Charles cantando “Something", mas não pensava que a canção fosse boa o suficiente. Chegou a dá-la para o cantor Joe Cocker, que a gravou antes, no álbum de 1969. Quando Lennon escutou a música, falou que era a melhor de “Abbey Road” e ficou maravilhado com sua delicadeza: “Something in the way she moves/ attracts me like no other love”, ou “algo no modo como ela anda/ atrai-me como nenhuma outra mulher”.

Pela primeira vez, Harrison dirigiu McCartney, dizendo ao músico como ele deveria conduzir a linha de baixo. Seu solo de guitarra, certeira combinação de slide guitar ao estilo dos blues românticos de Robert Johnson, se tornou um dos mais notórios do pop, com as pessoas - mesmo que já tenha se passado meio século de seu lançamento - o assobiando a cada vez que a canção toca no rádio ou no streaming. Virou a segunda composição dos Beatles com mais versões por outros artistas, ficando atrás de “Yesterday”, hit supremo.

Ray Charles gravou “Something” no seu “Volcanic Action of My Soul”, álbum lançado em 1971. E Frank Sinatra, conservador contumaz em matéria de música, a descreveu como a “melhor composição de amor dos últimos anos 50”, embora tenha dado os créditos à dupla Lennon-McCartney. Apesar do ato falho de Sinatra, Harrison se provou compositor de inconfundível requinte criativo. Mas ainda há o que falar dele? Para o jornalista Philip Norman, autor das biografias de John Lennon e Paul McCartney, a resposta é sim.


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Lennon e McCartney: dupla se tornou a mais famosa do pop. Foto: Divulgação


Com texto rigorosamente leve, numa viagem pela cena musical inglesa dos anos 1960 e pelos bastidores dos Beatles, Norman descreve como foi a primeira transmissão de “Love Me Do” na obra “George Harrison: The Reluctant Beatle”, que sairá no Brasil pela editora Belas Letras, no meio deste ano. “George escutou a primeira transmissão de ‘Love Me Do’ na casa da família, em Speke, com Harold, Louise e os irmãos torcendo por ele como sempre. ‘Ouvir na rádio a gravação, embora com poucos vestígios da participação dele, foi algo memorável.” Harrison, continua Norman, tremeu da cabeça aos pés: “O maior barato de todos os tempos”.

Na UFRJ, a jornalista Déborah Azevedo Coutinho, na pesquisa “A Televisão Como Mídia Propagadora da Beatlemania na Década de 60”, afirma que o fenômeno só foi possível graças aos meios de comunicação de massa, caso do rádio, do cinema, dos jornais e das revistas. “Tiveram grande responsabilidade ao lado da indústria fonográfica e dos shows em disseminar a beatlemania, mas foi com a televisão que o fenômeno se tornou planetário. Numa era pré-internet, como os anos 1960, a TV era o meio de comunicação que mais facilmente permitia um país receber imagens cotidianas do dia-a-dia de outro país.”

Era a aldeia global da qual falava o filósofo Marshall Mcluhan, a quem o mundo seria interligado por uma cultura unificada pela tecnologia. O fato é que os Beatles já tinham tido seu batismo de fogo. Em agosto de 1960, apresentaram-se pela primeira vez Hamburgo, onde moraram numa espelunca, fizeram dívidas em bares ou cafés e chegaram a tocar sete horas por noite - menos nos sábados, em que a carga horária, óbvio, aumentava uma hora. Os shows na cidade portuária alemã aconteceram durante os anos de 1961 e 1962, encerrando-se já com o grupo tendo lançado “Love Me Do”, primeiro hit da carreira.

Foi com a televisão que o fenômeno se tornou planetário. Numa era pré-internet, como os anos 1960, a TV era o meio de comunicação que mais facilmente permitia um país receber imagens cotidianas do dia-a-dia de outro país Déborah Azevedo Coutinho, jornalista

Após loucura de Hamburgo, banda lançou as bases para o pop

Em 1963, estrelas da música pop e afinados no palco, os britânicos lançaram o primeiro disco com o qual atingiram a marca de um milhão de cópias vendidas na Grã-Bretanha. Com a inconfundível foto de McCartney, Lennon, Harrison e Starr em preto e branco feita pelo fotógrafo Robert Freeman, "With The Beatles" tem as primeiras composições assinadas pela dupla Lennon-McCartney, com destaque para “All My Loving”, clássico de Paul, e a releitura de “Roll Over Beethoven", hino do rock criado pelo guitarrista Chuck Berry.

Bob Dylan, responsável por tornar o rock sério a partir de suas letras sociopolíticas, se impressionou com a sonoridade de Liverpool. “Eles estavam fazendo coisas que ninguém fazia”, afirmou o trovador folk, anos depois da beatlemania. O cantor norte-americano lhes mostrou a maconha, substância comum entre jazzistas e blueseiros, uma vez que os ajudavam a tornar o tempo menos acelerado. Foi essencial na mudança de rumo artístico do quarteto evidenciada nos anos seguintes, quando viraram ícones culturais, a partir de 1966.

Com o poeta Allen Ginsberg pulando da cadeira alucinado ao escutar os primeiros acordes de “I Want to Hold Your Hand”, hits matadores como “A Hard Day's Night” tocando sem parar nas rádios e Lennon procurando escrever letras de um jeito dylanesco no disco “Help”, os Beatles decidiram parar de fazer shows. Encheram-se de gravar discos rápidos, sem acabamento musical ou requinte poético desejados. E, viajando no LSD, o cérebro de Lennon lhe avisou sobre a importância de destruir o ego. Aqui, veja performance consagradora no programa de Ed Sullivan, em 1964:

Para o jornalista inglês Steve Turner, inicia-se aí o período criativamente mais fértil dos Beatles. “1966 foi, sem dúvida, fundamental na vida dos Beatles como artistas de palco e de estúdio. Antes disso, eram os quatro queridinhos de Liverpool que usavam ternos idênticos no palco e tocavam em casas abarrotadas de adolescentes aos berros”, escreve, na obra “Beatles 1966”, destacando que o público era formado, em grande medida, por mulheres.

Guinada artística

Mas como, num período tão curto, a banda foi das músicas para infestar as paradas de sucesso à psicodelia? Necessidade de emancipação artística, ora. McCartney, vira e mexe, lembra que o stone Mick Jagger costumava a se referir a ele, Lennon, Harrison e Starr como “Monstro de Quatro Cabeças”, uma vez que eram uma entidade, tendo as mesmas ideias, vestindo as mesmas roupas, gostando das mesma músicas, lendo os mesmos livros, vendo os mesmos filmes. Era preciso ir além - esteticamente falando. E lá foram eles.

Depois de “Revolver”, lançado em 1966, os Beatles criaram simplesmente a obra mais famosa da pop art: “Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band”, de 1967. Essa fantasia musical, fortemente inspirada na cultura do ácido, elemento captado pelo designer Peter Blake na capa, liderou durante 15 dias as paradas da “Billboard”. Abre de maneira contagiante com um rock de McCartney, que Jimi Hendrix o deixou lisonjeado por tocá-lo ao vivo dois dias após seu lançamento. Há ainda a lisérgica “Lucy in the Sky With Diamonds”, que pode ser ouvida aqui:

Se a provocante “Strawberry Fields” ligou os elepês “Revolver” e “Sgt Pepper´s…”, a banda atingiu níveis artísticos sem os quais seria impossível vislumbrar o futuro, nos anos 1970. Até os Rolling Stones, cuja banda - segundo o escritor Tom Wolfe - era mais fascinante que Beatles porque seus músicos queriam nos roubar, se psicodelizou em “The Satanic Majesties Request”. Lennon, McCartney, Harrison e Starr, entre 1965 e 1970, se superaram: “Magical Mystery Tour”, “White Album”, “Yellow Submarine”, “Abbey Road” e “Let It Be”.

Em sua pesquisa, a publicitária Luana Lima lembra que a relação entre os músicos já estava corroída nos últimos álbuns. “E os embates decorrentes de questões financeiras e empresariais com que tinham que lidar (por conta da morte de Brian Epstein) acabaram afetando a amizade entre eles. ‘Abbey Road’ foi o último trabalho dos Beatles e a última vez que os quatros se reuniram para fazer música ou tocarem juntos”, afirma, em “Referências Musicais do Passado entre a Juventude Atual”. Como diria BB King: a emoção se foi.

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