Cultura

Roendo restos de Ronald Reagan

Redação Diário da Manhã

Publicado em 23 de maio de 2025 às 12:06 | Atualizado há 2 dias

Fred Zero Quatro trouxe o samba esquema noise ao Setor Oeste no último ano - Foto: Shiva Alt Bar/ Facebook
Fred Zero Quatro trouxe o samba esquema noise ao Setor Oeste no último ano - Foto: Shiva Alt Bar/ Facebook

Banda pernambucana traz show político-musical ao Shiva, hoje, com repertório que transformou música popular nos anos 1990. Entre libelos politizados e letras ternas, grupo mangue radiografa a lama e o caos do Brasil

Marcus Vinícius Beck

Roendo os restos de Ronald Reagan, o Mundo Livre S/A rebate discursos alienantes, nesta sexta-feira (23/05), a partir das 20h30, no Shiva. É, caro Xico Sá, embarcaremos em um show-viagem de alívio antifa após a walking dead folia destruir riso & flora brasileiros. 

Estamos vivos. Esquematizados no samba noise. O mangue ressoa — altíssimo. “Um vírus contamina pelos olhos, ouvidos/ Línguas, narizes, fios elétricos/ Ondas sonoras, vírus conduzidos a cabo/ UHF, antenas-agulhas”, vocaliza o mangueboy, cantor e guitarrista Fred Zero Quatro, na faixa “Manguebit”, a primeira do disco “Samba Esquema Noise” (1994). 

Dois anos antes, Zero Quatro criara um texto-manifesto. Os neurônios do caranguejo com cérebro produziram frases lapidares sobre a manguetown. “Mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade e caos”, sentencia o fundador do MLSA, chancelado pelo jornalista Renato L., “ministro das comunicações” do manguebit.

Trinta e três anos depois, o Brasil se neoliberalizou ainda mais. Zero Quatro fincou suas antenas na lama e no caos, enquanto o deus mercado lhe fornecia a bola do jogo. Para ele, também jornalista, os mangueboys são interessados em pós-história e plasticidade, mundo pós-algoritmo e fundamentalismo tecnológico, pós-identitarismo e pensamento não digital. 

Então, bróder, seguinte: o Shiva será um espaço massa para você colar hoje à noite. E vou além — é ali, meu rapaz, que o Mundo Livre nos guiará a uma viagem estético-política que começa no punk e desemboca no mangue. Essa história se inicia nos anos 1980 — pouco tempo depois de a Lei da Anistia ter livrado os militares da cadeia pelos crimes da ditadura. 

Capa do disco “Samba Esquema Noise”, que marcou música brasileira nos anos 1990 – Foto: Divulgação

Da UFPE ao samba esquema noise

Fundado em 1984 — seis anos após o Congresso Nacional promulgar a anistia —, o MLSA guiava-se pelo ímpeto faça-você-mesmo. Na UFPE, onde Zero Quatro estudara Jornalismo, a banda fizera seu primeiro show. Faltava estrutura, contudo. Os estúdios eram precários, quando era possível encontrá-los, e os equipamentos e locais para tocar não existiam.

Foram dez anos de batalhas até gravar “Samba Esquema Noise”. Nesse tempo, Zero Quatro meteu-se em furadas e ciladas, viu a grana minguar e lascou-se. Faz bicos, dias difíceis, aqueles. Restou-lhe o manguetown. Da experiência paulistana, trouxe composições — uma delas, “Seu Suor é o Melhor de Você”, viria a ser lançada em “Guentando a Ôia”, de 1996.

A guitarra ecoa distorcida, ondulante, modulada — timbraço. Deixa vestígios em nossos ouvidos flagelados. Cordas elétricas misturadas a batuques percussivos. Versos situados entre Karl Marx e Jorge Ben: “Trabalho, trabalho, novo/ Trabalho, trabalho, novo/ Trabalho, trabalho, novo.” “Livre Iniciativa”, joia fumegante na mão, luz irreluzente, ideia na cabeça. 

Publicado pela Bengala Records, “Samba Esquema Noise” altera o percurso feito por Jorge Ben. Se o criador do “Samba Esquema Novo” propusera em sua “África Brasil” (1976) tocar samba com guitarra, Zero Quatro e seu Mundo Livre levaram o cavaquinho para a linguagem do rock, numa inversão estética subversiva. Desde então, é assinatura deles.

“Guentando a Oiâ” representa a radicalização discursiva do Mundo Livre – Foto: Divulgação

Depois desse disco, a banda radicalizou o discurso. Reapareceu barulhenta em “Guentando a Ôia” (1996). O encarte mostra duas imagens ilustrativas: galo de briga e jogo de azar. Zero Quatro qualificou a obra fonográfica como naturalista e, ao mesmo tempo, selvagem.

Uma selvageria pop, digamos. Acelerado e indomável, o cavaquinho agora desliza pelo circuito bateria-baixo-guitarra no mangue-rock “Free World”, um clássico dos anos 1990. Em seguida, a guitarra entra distorcida em “Destruindo a Camada de Ozônio” e depois o baixo grooveia, espertão e dançante, para enfiar-se em comentários sibilantes com as seis cordas.  

Militando na contra-informação — para evocar o libelo sonoro de “Guentando a Ôia” —, o MLSA chegaria ao olimpo da música brasileira com “Carnaval na Obra” (1998) e “Por Pouco” (2000). Ainda assim, segundo o crítico musical Pedro Alexandre Sanches, a banda seria classificada como panfletária “por vozes do aparato midiático despolitizante”. 

No primeiro trabalho, Zero Quatro inverte os papéis ao ironizar que “computadores fazem arte” e “artistas fazem dinheiro”. Já no segundo álbum, criando um eu lírico absolutamente apaixonado, o mangueboy mira a sutileza poética em “Meu Esquema”, um hit samba esquema novo lançado no álbum que saiu no ano 2000. “Ela é meu treino de futebol”, entoa. 

Nação Zumbi & Mundo Livre: mangue sintonizou música brasileira às transformações internacionais – Foto: Divulgação

Mangueboys vs casa-grande

Apesar das divergências entre os mangueboys, Zero Quatro defendeu Chico Science da pena rancorosa do escritor conterrâneo Ariano Suassuna na música “O Africano e o Ariano”, gravada em “Guentando a Ôia”. “O negro sempre quis sair do gueto”, constata, salientando que os povos africanos foram levados aos EUA e lá criaram o jazz e o blues, o gospel e o soul, o R&B e o rock, o rap e o hip-hop. “A alma africana sempre esteve no olho do furacão.”

Escreve Alexandre Sanches no ensaio “‘Mundo Livre S/A 4.0’ Ilumina o Samba de Combate de Zero Quatro”: “Menos que nacionalistas, as diatribes de Ariano Suassuna contra Chico e o manguebit seriam, para Fred, mais uma representação do modelo colonial-racista de casa-grande & senzala. Gilberto Freyre agitava-se morto-vivo no túmulo do maracatu.”

Como percebe essa peça jornalística, publicada no site “Farofafá” por Alexandre Sanches quando o escritor Pedro de Luna lançou biografia do MLSA em 2024, “a acusação depreciativa foi diminuindo na mesma medida em que diminuía a repercussão da banda-repórter entre o operariado jornalístico – para alegria e alívio dos patrões”. 

Isto é, midiaticamente deixava de existir, o Mundo Livre. Mas os mangueboys resistiram, claro. Nos anos 2000, lançaram os discos “O Outro Mundo de Manuela Rosário” (2003) e “Combat Samba” (2008), este referência ao grupo punk inglês The Clash. Nessa época, fizeram também o EP “Bebadogroove”, distribuído pela Monstro Discos e que faz uma alusão em seu nome ao clássico “Bebadosamba”, do sambista Paulinho da Viola. 

MLSA fez releituras de músicas da Nação Zumbi, que reinterpretou, por sua vez, hits dos companheiros de geração – Foto: Divulgação

Zero Quatro não aderiu às manifestações de Junho de 2013 — como fizera, por exemplo, seu colega de geração Marcelo Falcão, de O Rappa. Revelou-se crítico ao impeachment da então presidente Dilma Rousseff, que entende ter sido um golpe sobre o qual, vira e mexe, trata em entrevistas à imprensa. Para o mangueboy, o processo democrático se rompeu em 2016.

Entre “Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa” (2011) e “Mundo Livre S.A vs Nação Zumbi” (2013), a crise política se intensificou, criando um cenário que, em 2015, levaria secundaristas pelo País a ocuparem escolas públicas. Dois anos depois, trabalhadores e estudantes saíram às ruas de Goiânia para protestar contra as reformas trabalhista e previdenciária de Michael Temer. 

Este repórter era um dos 30 mil manifestantes no cruzamento das avenidas Goiás e Anhanguera, no Setor Central, na manhã de 28 de abril de 2017. Na ocasião, o estudante Matheus Ferreira, aluno do curso de Ciências Sociais da UFG, teve traumatismo cranioencefálico (TCE). Um cassetete rompeu-se em sua cabeça. Um policial militar o golpeou. Momento capturado pelo fotógrafo Luiz da Luz.

É a capa do disco “A Dança dos Não Famosos” (2018), que saiu pela Monstro Discos. Quando analisara a imagem, Zero Quatro observou que, na verdade, Matheus parecia estar dançando — como numa coreografia dramática. “A esperança usa cassetete/ Feito com madeira da elevação”, canta o mangueboy em “Batismo NukGruuvk”, na abertura. “Jovem em situação de risco.”

Envolvente e dançante, o disco remete ao quadro “Domingão do Faustão”, que representava, para Fred Zero Quatro, o entretenimento alienante da classe média. Por isso o suingue, os grooves flutuantes. Por isso as ideias para a pista, os ritmos para o corpo. Por isso a dança, a dança dos não famosos. O programa televisivo — lembremos — era exibido nas noites de domingo na TV Globo — antes do “Fantástico”, o estandarte jornalístico da família. 

“A Dança dos Não Famosos” captura a vida política conturbada da sociedade brasileira – Foto: Divulgação

O mangue contra a fake news

Sonoramente, o cavaquinho — recurso estético do MLSA — cede espaço a um piano quente, meio Nicky Hopkins, meio Rolling Stones. Mas aquele instrumento volta, vivíssimo, aos arranjos de “Walking Dead Folia (Sorria Você Alta)”, de 2022. O disco deleita o ouvinte com participações de Jorge Du Peixe e Doralyce. É dela a voz que ressoa na faixa “Melô das Musas”, dessa vez em versão repaginada. A canção saíra lá atrás, em “Samba Esquema Noise”.

No front contra a algoritmização do pensamento, a banda ataca o capitalismo pós-industrial no mangue-rock “Usura Emergencial”. “Wall Street gera desnutrição/ Anticorpo é carne e feijão/ Farta usura emergencial/ Contamina”, dispara Zero Quatro, que engatilha a palavra e dispara versos sem floreios no refrão pandêmico — era tempo de covid, amigos.

Assim que a capa do álbum caiu nas redes sociais — vemos nela um folião verde e amarelo simpático ao horror necropolítico até que ele próprio vai parar no caixão —, houve um movimento pesado. O gabinete do ódio marcou perfis da Polícia Federal e de um filho do ex-presidente Jair Bolsonaro. Tudo por causa de uma crítica à tiktokzação da vida política, tendência daqueles tempos em que estávamos quarentenados por causa do vírus.

Toda essa história, não se esqueça, será revisitada nesta sexta (23/05) no Shiva, em um show no qual o Mundo Livre S/A celebra 40 anos de carreira. A banda escolheu Brasília para iniciar a turnê, que começou ontem no Infinu — antes, contudo, rolou um bate-papo entre o biógrafo Pedro de Luna, autor de “Do Punk ao Mangue”, e o sambista do esquema noise Fred Zero Quatro. E nós, mangueboys e manguegirls, sobrevivemos roendo os restos de Ronald Reagan.

Capa de “Walking Dead Folia” foi criada pelo artista Wendell Araújo e retrata extrema direita durante a pandemia – Foto: Divulgação
Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias