Romance antigo
Diário da Manhã
Publicado em 7 de fevereiro de 2017 às 01:15 | Atualizado há 8 anos
Quando não havia televisão, era costume a família reunir-se depois do jantar e ficar conversando até a hora de dormir, ou seja, pelas oito da noite. As crianças inventavam brincadeiras, enquanto os mais velhos comentavam as novidades ou contavam casos.
Fascinavam-me as histórias sobre remotos antepassados, cujos retratos estavam na sala de visitas, enfeitados com flores artificiais. Curiosa, eu ficava a ouvir os adultos evocarem aqueles vultos perdidos no tempo, seus feitos, suas vidas, seus amores. Quando o sono chegava, meio acordada, meio dormindo, imaginava vislumbrar suas feições e roupas, ouvir vozes – até que as pálpebras pesavam e alguém me carregava para o aconchego da rede.
Um dos relatos de que mais gostava dizia respeito a um primo distante, muito idoso, que de vez em quando nos visitava. Ele mesmo não falava a respeito, mas sua história era comentada em prosa e verso. Uma de minhas tias contava-a em detalhes, pois fora partícipe do capítulo final.
Médico, solteirão, ele vivia sozinho numa casa enorme. Dedicava-se à profissão, atendendo ricos e pobres com igual competência e solicitude; viajava muito, passava longas temporadas no exterior. Era respeitado e admirado – mas parecia infeliz. Jamais dava uma risada; quando muito, sorria levemente mantendo os olhos tristes.
Dizia-se que ao voltar da faculdade, recém formado, apaixonou-se por uma prima, jovem de grande formosura e raras prendas domésticas. Ela morava com os pais em uma fazenda, onde ele a visitava nos finais de semana.
Depois de algum tempo de namoro – olhares furtivos e tímidos sorrisos–ficaram noivos. De acordo com o costume, seria preciso esperar alguns meses para o casamento, tempo suficiente para fazer o enxoval, preparar a festa, convidar parentes e amigos.
Para os noivos foi uma quadra de alegrias e deslumbramento. A moça gostava de cantar modinhas; o rapaz acompanhava-a ao piano, sob o olhar vigilante da futura sogra. Nos domingos à noitinha, ele retornava à cidade, onde o aguardavam o consultório e os clientes. Ao longo da semana, mandava bilhetes e cartões postais para a amada; ela respondia com pequenas prendas: um cacho de cabelos amarrados com fita, uma florzinha seca entre folhas de pergaminho.
Aproximava-se a data do casório. Duas costureiras trabalhavam em tempo integral, confeccionando lençóis, fronhas, cobertas e toalhas. As roupas pessoais vieram da capital; por último chegara o vestido da noiva, em seda branca rebordada com pérolas. No quarto da moça, um arame foi estendido de parede a parede para pendurar as peças depois de passadas, antes que guardá-las nas arcas e malas.
No último fim de semana de solteiros, em doce enleio, os noivos foram passear no jardim ao lado da casa. Chovera mas o dia estava luminoso e quente. Abelhas zuniam, cachos de rosa-amélia perfumavam o ar; colhendo um deles, a jovem feriu um dedo em um espinho. Assustada, deixou cair as flores no chão enlameado e novamente as pegou, sujando as mãos. Depois de limpá-las na própria roupa, continuaram o passeio.
À hora do almoço, ela se queixou de indisposição. Comeu pouco, tinha dor de cabeça. Ele deu-lhe um comprimido e sugeriu que se deitasse para repousar. Despediu-se: iria preocupado, mas precisava tratar dos negócios.
O mal estar da jovem agravou-se durante a noite: dores no corpo, febre que não cedia às tisanas caseiras. Na manhã seguinte, apresentava rigidez na nuca e nos membros; apavorados, os pais mandaram chamar o noivo, que veio correndo. O quadro piorara – e continuou piorando, a despeito dos remédios ministrados. Não houve como deter a doença: era tétano!
Choro, desespero, luto. A longa travessia da dor a todos fez sofrer. O quase viúvo recolheu-se a um mutismo inconformado; nunca mais namorou ninguém e jamais se casou. Os pais choraram e rezaram; em memória da filha, resolveram deixar o quarto dela tal como estava arrumado em seu último dia. As janelas foram fechadas e a porta, cerrada. A disposição dos móveis, as peças guardadas nas arcas, as roupas penduradas no arame – tudo permaneceu igual. A vida seguiu seu curso: o ex-noivo vivendo por viver; os genitores tentando empurrar a dor para o mais recôndito do ser. E o quarto lacrado, indevassado.
Muitos anos passados, depois de os pais da jovem terem falecido, minha tia fez uma visita aos primos que tinham herdado a fazenda. Diante da porta ainda lacrada, ela ponderou que era hora de exorcizar a lembrança da tragédia – e sugeriu que fosse aberto o cômodo fechado.
Ninguém sabia onde estava a chave. A porta foi arrombada: uma lufada de ar adentrou o ambiente confinado. À frente, pendurado no arame, imaculadamente branco, esvoaçou a roupa ritual do casamento inconcluso. Com um frio na espinha a visitante aproximou-se. E foi como um passe de mágica: o vulto que alvejava na penumbra esvaiu-se em pó, desintegrou-se. No assoalho, uma poeira diáfana indicava que o vestido de noiva evanescera.
(Lena Castello Branco [email protected])