Sobre sangue na calçada
Redação DM
Publicado em 1 de fevereiro de 2017 às 00:46 | Atualizado há 5 meses
O mês de janeiro é marcado desde 2004 pelo Dia da Visibilidade Trans, celebrado no dia 29. Observando a realidade de violência e exclusão social que a maior parte da população trans enfrenta no país esta data torna-se de extrema importância no calendário da luta de gênero.
Esse processo de exclusão empurra travestis e transsexuais para empregos informais e exploração sexual. De acordo com a ANTRA–Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil. Um problema de não aceitação dentro e fora de suas famílias acaba impedindo o acesso de pessoas trans à direitos básicos como saúde e educação ou até mesmo caminhar tranquilamente pelas ruas.
Para alertar sobre esse cenário de violência, a qual mulheres trans são expostas, o estudante de jornalismo e cineasta goiano Lucas Xavier e a estudante de psicologia e ciências Sociais da UFPE Dandara Luísa, realizaram uma genial produção audiovisual intitulada “Lascívia”. O filme é um curta metragem de ficção, que infelizmente não está longe da realidade, retratando a violência sofrida por essa parcela da população.
Quem representa o papel da mulher transexual no filme é Verônica Valente, sua personagem carrega o sugestivo nome de Madalena. O curta também conta com a atuação de Silas Veloso no papel de Edmilson. Ao fundo o texto ‘’Meu corpo não menstrua, porém, meu sangue escorre todos os dias’’.
Na página do evento de lançamento, que aconteceu no anfiteatro do Centro de Artes e Comunicações da UFPE, os realizadores descrevem a finalidade deste trabalho: “É da dor e do sangramento da invisibilidade trans que nasce LASCÍVIA, um filme de Dandara Luisa e Lucas Xavier. Para finalizar o Mês da visibilidade trans, e em sua homenagem, vamos lançá-lo para o mundo. Lascívia é, antes de tudo, a vivência de muitas, de todas nós. É, acima de tudo, um ato político. Trata-se dos nossos corpos, do derramamento do nosso sangue, do extermínio de muitas travestis e mulheres trans; da invasão ao corpo daquelas que são vistas como um ser fácil, acessível e que precisa ser eliminado”.
Lucas Xavier conta que o filme é um trabalho final da faculdade, mas que ele transcendeu seu objetivo inicial: “Dandara tinha falado comigo pra gente fazer algo audiovisual sobre visibilidade trans. Daí uma semana depois que ela disse isso, um professor me pediu um trabalho que teria que ser um curta. Então eu uni a ideia da dandara com o trabalho e acabou que o trabalho se tornou o de menos e focamos na produção de algo importante pro dia da visibilidade trans”.
Sobre a parceria de direção de Lucas e Dandara ele relata como foi construído “Lascívia” que foi produzido de forma independente e ao estilo bem guerrilha, utilizando equipamentos não profissionais. “Pegamos um texto da dandara e eu fiz o roteiro, adaptado desse texto. Tentamos pegar equipamentos profissionais na universidade, mas a burocracia não deixou rolar e a gente se virou com o que tinha. A captação de áudio de todo o filme foi feita com um smartphone convencional. Usamos duas câmeras e um smartphone pra gravar as cenas.”
Ele continua sobre o rápido e intenso processo que deu luz ao produto audiovisual: “E foi tudo assim, dois amigos meus ajudaram, Dandara encontrou o Silas e a Verônica, todo mundo topou fazer. E assim rolou, foi um curta pré produzido, produzido e pós produzido em uma semana. Tivemos a ideia numa segunda e na outra segunda tava finalizado. Foi uma semana intensa mas rolou, graças à organização coletiva da galera que se dispôs a fazer e ajudar na hora”.
Entrevista com a estudante de psicologia e diretora do curta Dandara Luísa
DMRevista – Sobre produções audiovisuais com a temática trans, muita coisa é produzida aqui no país?
Dandara Luísa: Dificilmente há publicações a respeito de pessoas trans. E quando tem, querem nos utilizar como chacota e caricatas. Felizmente, nos últimos tempos pessoas trans e travestis vem protagonizando suas vida vivências e também utilizando o áudio visual como um veículo para nos dar voz. Mas, ainda é pouco. Quem se interessa em produzir algo sobre pessoas trans? Estão mais preocupados em nos manter nas margens, visto que desafiamos as normas e regras deste velho sistema.
DMRevista – Como você acabou integrando a construção deste curta, com qual objetivo?
Dandara Luísa: A priori, o meu objetivo era produzir algo para o mês da visibilidade trans. Algo que chamasse a atenção para a nossa realidade. Daí, com a ajuda de Lucas tudo ficou lindo e perfeito. Toda a equipe deu vida ao meu texto “meu corpo não menstrua, porém, meu sangue escorre todos os dias”, de onde o curta foi adaptado.
DMRevista – Quais são as pautas exigidas pelas pessoas trans, que tipo de políticas e iniciativas poderiam diminuir a transfobia e aumentar a integração social das pessoas trans?
Dandara Luísa: De imediato, deveria haver ações mais diretas e efetivas, ações punitivas contra qualquer tipo de preconceito e políticas que nos contemple, de fato. O nome social e o uso do banheiro ainda é um problema no Brasil para travestis e transexuais. A educação ainda não é de acesso para a gente, além de todos os outros campos. A justificativa para tudo isso é com base em fundamentos moralistas e regiões, aos quais nos assassinam todos os dias e nos colocam na categoria de abjetos.
DMRevista – Qual a explicação para o aumento de casos de violência e assassinato de pessoas trans mesmo com o crescimento das discussões de gênero e sexualidade?
Dandara Luísa: A discussão de gênero ainda é insuficiente. A violência contra a mulher ainda não acabou, assim como a transfobia, pois são opressões estruturais. Enquanto as pessoas trans e travestis existirem, a sociedade terá noção de que a normalidade existe e até onde devem ir em seus quadrados. Como falei na resposta anterior, nós somos vidas abjetas, ou seja, seres sem importância política e social. Tudo isso porque somos corpos que desafiam as normas, e atingimos aquilo que é visto como adequado e correto a seguir.
DMRevista – O filme e o texto do off foram baseados em um texto seu, e ele fala sobre o questionamento que as pessoas trans enfrentam a respeito de seu gênero. Qual a postura que você toma frente a estes questionamentos?
Dandara Luísa: A deslegitimação das nossa identidades é constante e a nossa luta parte daie, pois negam a nossa existência. Reafirmar que somos, sem aceitar negativas, é mostrar que também temos o direito de existir. Durante muito tempo nós residimos no seio da escuridão, porque sempre nos empurraram para lá como a nossa única opção. Nunca tivemos o direito à saúde, a educação, a transitar em sociedade, a ter uma família e, acima de tudo, ao afeto. Isso não deve mais continuar.
DMRevista – A hiperssexualização da mulher trans é um fator que contribui para esses alarmantes números de violência?
Dandara Luísa: Sim, com certeza. Nós somos vistas como um corpo fácil, totalmente acessível para o mercado. Mas, é um corpo desejado e indesejado ao mesmo tempo. Vou te usar pra ter prazer, mas depois vou te eliminar para que ninguém saiba. Tá louco? Imagina se souberem que eu tô ficando com uma travesti? Vão achar que deixei de ser homem. É um pensamento estrutural que provoca medo na sociedade.