O ano é 2018, as notícias que vemos pela TV e vez ou outra escutamos nos rádios indo e voltando do trabalho parecem manchetes da época da ditadura. Um ano que começa com intervenção militar e mandado de busca coletivo no Rio de Janeiro, um curso da UnB sendo proibido (censurado) pelo ministério da educação e diversos outros tipos de afrontas a liberdade e os direitos humanos básicos. É nesse contexto que a banda goiana Señores vem a toda com mais um disco conceitual e que bate forte na cara de todos que escutam.
O grupo está na ativa desde 1999, já tendo lançado os discos “Ninguém é Señor de Ninguém” (2002) e “Paz entre nós, Guerra aos Señores” (2005). Após a obra prima da banda, “Balões de ar” (2016) ser lançada, muita água correu e muita luta e enfrentamento se passou na capital goiana. Porém o novo EP do grupo formado por Fred (Baixo e Vocal), Rafael Saddi (Guitarra e Vocal) e Maurício (Bateria e vocais), trouxe a tona e as claras manifestações de rua, cenas de confronto e massacre policial. Com referência a insurreição popular de Junho de 2013, o disco “Aqui é Chernobyl” traça um paralelo entre a geração que veio após o Césio 137 e que agora tem que lidar com a violência policial, a repressão e descaso do estado e ainda preconceito de classe.
É possível já absorver a violência estética escarrada pelo power trio logo de cara a partir da capa do novo EP. Uma cena de caos pós-apocalíptico completo estampa uma imagem de guerra em um cenário corriqueiro e marcante: a praça do bandeirante no cruzamento da Av. Goiás com Anhanguera. Além da fumaça verde ao fundo, temos o Eixão tombado e uma imagem que habita o sonho de qualquer militante de esquerda goiano, a estátua do Diabo Velho devidamente decapitada. Créditos desta obra icônica que já marca desde o começo da experiência para os artistas Gustavo Cruzeiro e João Felipe Tobias, autores da capa do EP.
2013
Nessa nova obra prima da música militante nacional, a Señores conta a partir de várias músicas a história de Pedro Chernobyl, que é um negro, pobre que vive invisível na “Hiroshima da América Latina”. Entre outras passagens ele vê o pai cometendo suicídio após ter entrado em contato com o “brilho da morte e feito a sua família inteira sofrer”. Depois o disco entra nas questões sociais que sempre geram conflitos na capital goiana, como a questão do transporte, que é caro, atrasa, está sempre lotado e aumenta o valor da passagem de uma forma abusiva.
O grupo explora essa questão do transporte coletivo e as lutas que giram em torno do tema (que foi o grande mote das jornadas de junho de 2013) principalmente em duas músicas, “Revolta no Terminal” e “Melhor Correr”. Com letras extremamente politizadas e riffs rápidos e marcantes, certamente esse novo disco do Señores vai garantir bons momentos de ‘rodinha’ e ‘moshs’ nos shows em inferninhos e festivais em que tocarem. O disco termina com a música “Cemitério de homens vivos”, uma alusão clara a prisão e a falta de liberdade, que certamente é uma das piores torturas possíveis na existência humana, infelizmente extremamente comum entre manifestantes goianos.
E hoje a noite é a data escolhida para o lançamento dessa nova obra, que vale tanto pela questão estética, com um punk rock clássico e bem executado, quanto pela historicidade proposta pela obra. Então já deixe anotado ai: nesta sexta (23) a partir das 19h, no pub ‘A Toca Coletivo’, é dia de muito punk rock na festa de pré lançamento do novo EP do Señores, o “Aqui é Chernobyl”.
Trata-se do primeiro show de uma mini-turnê de divulgação deste novo trabalho, que ainda passará por Rio Verde no dia 24 e Brasília dia 25, com previsão de lançamento do álbum físico em meados de abril. Para complementar a festa, estão convidadas as bandas de punk rock Tripa Sexy de São Paulo (composta por integrantes e ex integrantes da banda Perturba, que já passou por aqui em duas oportunidades e também do Fistt) e Chef Wong’s, banda que está na ativa desde os anos 2000, e também o grupo goiano Sheena Ye, que fizeram uma mudança na formação no ano passado e se apresentarão pela primeira vez com o novo baterista neste evento.
Sobre o novo EP do grupo conversei um pouco com os integrantes da banda Señores, que explicaram um pouco do conceito do disco entre outras curiosidades:
ÍNTEGRA DA ENTREVISTA
DMRevista – O título desse novo trabalho de vocês remete diretamente ao acidente com o Césio 137, qual a mensagem sobre esse marco social na história da capital goiana que vocês querem repassar após 30 anos do ocorrido?
Señores – “Eu gostaria de ver Justiça. Mas, eu acho que eu vou morrer antes disso. Porque minha vida acho que acabou em setembro de 87”. Essa foi a frase de Marques de Sousa Rodrigues, uma das vítimas do Césio, nos 20 anos da catástrofe. Ora, esse rapaz, bastante jovem à época, foi enviado como policial, pelo governo, para as ruas contaminadas. Mas, ele não sabia de nada. O governo oficialmente anunciava que o que havia ali era um vazamento de gás. Meu deus, essa mentira oficial, visando esconder o escândalo, produziu a contaminação de milhões de pessoas. E o que ninguém diz é que os responsáveis por isso estão hoje ainda no poder. Vou dizer o que não se pode dizer em um estado governado por coronéis. Mas, veja Antônio Faleiros, o guru das Organizações Sociais na Saúde e na Educação. Era secretário de saúde à época. Ele foi um dos que divulgaram, oficialmente, que o que havia ali era vazamento de gás, tentando esconder a radiação. Inclusive, jornalistas também correram vários riscos ao irem, desprevenidos, ao local, acreditando na versão oficial.
Além de Faleiros, os donos da clínica responsável pelo abandono do equipamento com césio continuaram aí. Uma delas, há poucos anos, à frente da Associação de Combate ao Câncer, foi alvo de uma operação do Ministério Público que mostrava que ela, anos depois, do acidente, desviava muita grana do Hospital do Câncer. Meu deus, ela ajudou a produzir câncer em milhões de pessoas e depois ainda lucrou com isso.
Não há uma mensagem que queremos dar. O que queremos é só transmitir nossa indignação, nossa raiva, com tudo o que fizeram e continuam fazendo. Se há uma intenção, neste álbum, eu definiria como a vontade de contaminar as pessoas com esse sentimento. Nada mais que isso.
DMRevista – O último trabalho de vocês foi o disco conceitual, definido por muitos como uma “ópera punk rock”, o Balões de Ar, qual a dinâmica deste novo EP, também tem uma narrativa específica?
Señores – Este novo EP também é um álbum conceitual. Todas as músicas compõem uma única história. Trata-se da vida de Pedro Chernobyl, um jovem negro, órfão de pai e de mãe, que cresceu na miséria. Seus pais morreram vítimas do Césio 137, e em maio de 2013, Chernobyl encontra nas revoltas contra a Tarifa a sua chance de descarregar, como a radiação, toda essa energia negativa, toda essa sua fúria, toda essa vontade destruidora produzida por uma vida inteira de opressão.
Mas, é um EP, a gente compôs em uma semana, por um convite do Chita Augusto, para experimentar a gravação de algo com ele. Como era um teste, decidimos compor algo novo. Se tivéssemos mais tempo, a gente faria mais 3 ou mais músicas (quantas fossem necessárias para dar profundidade a este nosso personagem), e lançaríamos um álbum completo. Mas, não esperávamos este resultado, que nos agradou bastante. Agora, mesmo, dá vontade de ter continuado esta história.
DMRevista – O clip da música ‘Pedro Chernobyl’ divulgado nos últimos dias nas redes sociais, trás imagens de revoltas e manifestações que ocorreram na capital goiana, por exemplo durante a insurreição conhecida como “Junho de 2013”, qual a correlação que vocês pretendem traçar entre o acidente do Césio e essas revoltas urbanas?
Señores – O que queremos, neste álbum, é estabelecer uma relação entre a experiência do Césio 137 e as gerações que cresceram depois desta catástrofe. Gerações que não vivenciaram a época, mas que cresceram pisando nos túmulos produzidos por ela. O Césio provocou a morte de centenas de pessoas, não contabilizadas pela narrativa oficial do governo. Mas, quando pessoas de carne e osso, e com mães, filhos e emprego, são assim massacradas, não é só elas que morrem. Foi Goiânia quem faleceu. É a imagem oficial de Goiânia, toda uma construção simbólica sobre uma cidade modelo, bonita, tranquila, produzidos de modo interessado por governos e fazendeiros, e que fornecia uma identidade ingênua e homogeneizadora, que ruíram em um dia de setembro de 1987. As gerações que nasceram depois disto, sem saber, cresceram sob o domínio da mesma narrativa anterior, porém agora já irreversivelmente contaminada. Pouco sabem do Césio, mas, conhecem o transporte coletivo, o crime, a imensa desigualdade social, a pobreza, a brutalidade policial. Tudo isso, sob a direção dos mesmos coronéis e sem mar. Isso é o que é pior. Sem mar. Em uma secura profunda, apodrecendo como comida sob o sol. Foi possível fechar os olhos para todo esse caos social através de uma narrativa oficial. Mas, eis que ela já não pode existir do mesmo modo. Ao contrário, a narrativa oficial, tanto sobre Goiás quanto sobre Goiânia, presa sobre o domínio econômico agrário, e que tem os músicos do pequi como seus ideólogos sonoros, soa, para qualquer jovem crescido sobre esta Goiânia urbana, como, e de fato é, opressora, limitadora. Ela não os define, ela não nos define. E eis que precisamos nos livrar dela. Mas, contra o poder estabelecido, não se luta senão aos pontapés.
No final, ao dizermos, Aqui é Chernobyl do centro do Brasil, o que estamos fazendo é expressar e ao mesmo tempo fundar, de novo, um poder, um contra-poder, expresso nas ruas por esta geração de 2013. Estamos falando: Aqui, meus caros, é o caos.
DMRevista – A Señores é conhecida local e nacionalmente pela politização de suas letras e a violência estética presente no som da banda, várias músicas inclusive se tornam palavras de ordem em manifestações de rua. Esse novo EP tem alguma música mais direcionada a esse público “militante”?
Señores – Eu acredito que todas as músicas dizem respeito a este público. Mas, em especial, nós regravamos uma música, agora na versão que tocamos em show (com guitarra, baixo e bateria), que já tínhamos gravado em violão no nosso primeiro EP. Trata-se do hino da Construção Libertária Goiana (CLG), “Por Resistência, Luta e Organização”. E também tem uma música que fizemos inspirados nas revoltas contra a tarifa, que se chama “Revolta no Terminal”. Creio que esta especialmente pode quem sabe servir de estímulo para que mais pessoas participem dos movimentos contra a máfia do transporte coletivo. No fim, este EP é uma expressão do levante de 2013. Não existiria sem ele.
DMRevista – Ainda sobre politização na música, como vocês avaliam o atual cenário político e social do Brasil? Como isso impactou no processo de criação desse novo EP?
Señores – É, por excelência, o momento de maior avanço das forças reacionárias desde o fim da ditadura. Toda a estética deste EP é influenciada por isso. É mais cru, sujo, direto e raivoso do que nossos álbuns anteriores. Desta vez, a coisa desandou. O punk rock de 1977, em Londres, ou no começo dos anos 80 no Brasil foi produzido pelas forças ativas daquele momento e jamais se teve o ambiente histórico propício para reeditar toda essa energia. Não depende simplesmente do artista, entende? É o espírito do tempo. O punk rock dos anos 1990 podia ser até mais bem feito, mas, também por isso, soava superficial, sem a força, a raiva daqueles tempos. No rock em geral, foi o rock los Hermanos, Strokes, que reinou. Bonitinho. Mas, não é tempo mais para isso. Eis que agora, no momento em que o rock fracassa de novo sem público, e quem quiser tocar tem que querer simplesmente tocar, sem público, sem fama, sem reconhecimento, é que encontramos o ambiente para a reedição do punk rock de origem, com toda a sua força, a sua energia, a sua raiva. Espero, apesar de tudo, que um dia, o mundo se livre deste tipo de música. Por enquanto, precisamos dela. Infelizmente.
FESTA DE PRÉ- LANÇAMENTO DO EP “AQUI É CHERNOBYL”
19h – Início do evento
19h30 – Sheena Ye
20h30 – Chef Wong's
21h30 – Tripa Sexy (SP)
22h30 – Señores
Data: Sexta, dia 23/02
Horário: a partir das 19h
Ingressos: R$ 10 até 20h30 / R$ 15 após 20h30
Local: A Toca Coletivo – Av. C 104, Esq. com Rua C 130, Qd. 222, Lt. 08 – Jardim América, Goiânia, Goiás, Brasil