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ENTRETENIMENTO

“Hoje em dia as gravadoras prendem o artista mais do que antes”

BNegão, 46, segurando uma xí­cara de café, chega à entrada de um hotel cinco estrelas em Brasília visivelmente cansado. Senta em uma cadeira, de frente para nós, e cumprimenta o guitarrista carioca Fernando Magalhães, 54, da banda oitentista Barão Vermelho, que foi em direção à máquina de café ex­presso que havia ao fundo antes de fumar um cigarro. Tentei puxar con­versa com Magalhães, mas ele não queria atrapalhar nossa entrevista e seguiu para fora do prédio. “Grande músico”, diz o cantor carioca, refe­rindo-se ao colega roqueiro, que iria tocar na noite daquele domingo, 30 setembro, na 20ª edição do festival brasiliense Porão do Rock.

Um dia antes da entrevista, BNe­gão dividiu o palco do Porão com Nação Zumbi para cantar clássicos do álbum Da Lama ao Caos, lança­do pelos pernambucanos em 1995 e eleito pela revista Rolling Stone o 13° disco mais importante da mú­sica brasileira. O trabalho também consolidara o movimento Mangue Beat que teve as portas abertas ao País por meio do manifesto Caran­guejo com Cérebro, escrito em 1992 pelo vocalista e guitarrista do grupo Mundo Livre S/A, Fred 04. Sucessos de BNegão, como a faixa Enxugan­do Gelo, do álbum homônimo, tam­bém fizeram parte do setlist.

Letrista da maioria das can­ções do Planet Hemp, banda ca­rioca de rap rock e hardcore, BNe­gão se apresenta pelo Brasil desde o início do ano com os Seletores de Frequência em comemoração aos 15 anos do disco Enxugando Gelo, lançado em 2003 e um dos primeiros a ser divulgado de for­ma independente. É autor ainda dos álbuns Sintoniza Lá, de 2012, e Transmutação, 2015. Já tocou no festival dinamarquês Roskilde junto com nomes de peso, como os ingleses do Black Sabbath e Brian Wilson, ex-integrante do The Beach Boys.

CONFIRA A ENTREVISTA:

DMRevista–A primeira coisa que estava escrito no jornal era: “Por que essa eleição será a mais radical desde a redemocratização?” O que você pensa sobre isso?

Primeiramente, o ato #EleNão foi maravilhoso. Infelizmente não consegui participar, porque eu es­tava destruído por conta de uma se­quência de shows que a gente vem fazendo nos últimos meses. Eu pre­cisava dormir, mas não conseguia porque queria saber o que estava rolando, como estava a manifes­tação e tal. Aí, fiquei neste meio do caminho, sacou? Cheguei em Bra­sília e estava no final do ato. Aca­bou perto do hotel.

DMRevista–Como você vê a mobilização das mulheres contra a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL)?

Foi uma resposta emocionante. E devemos isso às mulheres mara­vilhosas que puxaram esse ato e, mais uma vez, disseram não à bar­bárie. As pessoas acham que a in­ternet faz parte da vida, e se esque­cem de que representa apenas uma parte da vida. Considero a atitude das mulheres como uma espécie de Primavera Feminista.

DMRevista–O que o ultradireitista Bolsonaro representa?

Não precisa nem falar muito. É um sujeito despreparado. E o que está em jogo no momento é a ques­tão da humanidade, nem é a dico­tomia direita e esquerda. É como se você estivesse vendo o líder fascista italiano Benito Mussolini e o nazis­ta Adolf Hitler. Você precisa se posi­cionar e quem se posiciona está do lado certo da histórica, sacou? Te­nho certeza de que ele não vai ga­nhar as eleições. Ele vai para o se­gundo turno e perderá de forma feia.

DMRevista–Não seria exagero desprezar a simpatia que o ex-capitão do Exército possui?

Existe uma tendência mundial que é a política do medo, né? É de onde Bolsonaro veio. Ele surgiu dis­so. É fruto de programa policial, de jornalismo que enxergou que essa parada de violência gera audiên­cia. Então, os velhinhos, as velhi­nhas, a galera que está no bar, a galera que está trabalhando com a televisão ligada o dia todo está sendo bombardeada com esse tipo de informação. Tudo isso fez com que Bolsonaro ficasse gigante, sa­cou? Isso é um absurdo, porque o cara é um nada. A real é que ele é um nada, como ser um huma­no. Um nada. Só cresceu porque teve terreno. Não foi por ele. Mer­da fez crescer merda.

DMRevista–O ato #EleNão foi uma resposta à ascensão de Bolsonaro?

Sim, porque foi a movimen­tação feminina que mostrou que a candidatura provoca resistên­cia em vários setores da socieda­de brasileira.

DMRevista–Brasília é uma cidade que possui bastante essa vibe política. Qual foi a sensação de tocar na 20° edição do festival Porão do Rock em um contexto desses?

Foi um momento emocionante, porque a gente está vendo a coisa acontecer. Mas, na verdade, não tem muito o que dizer. É isso, as­sim. A gente está ao lado da coi­sa que acreditamos. Eu entrei na música para militar, né?

DMRevista–Então, você acha que a música tem o poder de mudar o pensamento das pessoas?

Sempre teve. Mas quem detém o poder de mudança interna são as próprias pessoas. Não adianta, por exemplo, o John Lennon ficar ali falando com o cara e o cara vai embora sem nenhum sentimento de mudança. Em minha visão, a mú­sica tem vários poderes maravilho­sos e ela não tem obrigatoriamente aquela coisa de você ser militante. Não acho também que militar seja o dever do músico, mas sinto que te­nho de fazer isso. Então, sinto essa obrigação e, como entrei na músi­ca para isso, e sendo minha músi­ca composição uma crítica social, sempre acreditei o tempo inteiro nes­sa forma de transformação social.

DMRevista–O que te deixa mais feliz nesse sentido?

Quando recebo feedback na rua. Antigamente, na época da carta a galera mandava carta. Um monte de situações de relatos sobre como as letras mudaram a forma de visão deles. Eu faço música de mudança. Não gosto também de usar o rótu­lo “música de protesto”, sacou? Não acho maneiro. A intenção é fazer as pessoas compreenderam o que elas estão vivendo.

DMRevista–Você acha que um festival como o Porão do Rock tem de acontecer nessa época?

Com certeza. Acho que em qual­quer época deve acontecer. Não tem essa, porque, assim, festival é festi­val. O mais foda é que você tem a chance de ver vários artistas na­quele curto espaço de tempo. Ge­ralmente, um show é mais caro do que um festival desse tipo, dessa magnitude. Tem festivais também que são caros para caralho. Mas estou falando de festivais como o Porão do Rock. Ver os pernambu­canos de Nação Zumbi e Cordel do Fogo Encantado em pouco tempo é foda. Festival é uma parada de­mocrática. Como músico também fico felizão de encontrar um mon­te de amigo. A gente conversa, põe o papo em dia e tal.

DMRevista–Vamos falar de mercado fonográfico: o artista é moldado pelos executivos?

Depende, cara. Tudo é época, sacou? E também não acho que os caras moldem os artistas. Na verdade, você só é moldado se você quiser, ou aceitar. Você não é obrigado a fazer nada. Você não é obrigado a assinar contrato com ninguém. Músico é um ser livre e libertário naturalmente. Se ele so­frer uma parada, é porque ele foi conveniente com aquilo ali, sa­cou? Se ele chorar, é porque ele… como posso dizer... Ele está cho­rando de bobeira, sacou? A real é que ele pode ir lá e falar ‘quero gravar’. Aí o cara vai pôr no con­trato isso e aquilo. Não concor­do…. Tô fora... Se mudar eu en­tro, senão, não. Aí o cara vai lá e assina e depois fica reclaman­do “porra, mas esse negócio não está no contrato e não sei lá o que”. É desonestidade intelectual, lem­brei a palavra que queria falar.

DMRevista–Com o Planet Hemp rolou algo parecido?

Não, porque era outra época. Antes teve o clássico disco Cabeça Dinossauro, dos Titãs, teve Legião Ur­bana, Plebe Rude, Barão Vermelho, Inocentes (ban­da de punk rock paulista­na surgida na década de 1980). O que acontece é a galera muitas vezes se deixa dominar por algum execu­tivo. Agora, se você se dei­xa, aí a parada é com você mesmo. Só para deixar cla­ro: não sou muito chegado a gra­vadora. Saí deste sistema em 2001 para nunca mais voltar.

DMRevista–Já que você saiu das gravadoras, como faz para lançar seu trabalho?

De forma independente.

DMRevista–E quais são as dificuldades? Como é lançar um disco desse jeito?

Hoje em dia é mais fácil do que antigamente. Antes da gente a ga­lera realmente comeu o pão que o capiroto amassou. Era triste. Não tinha internet, não tinha porra ne­nhuma. Aí o cara lutava muito, sa­cou? Muitas vezes as coisas que não estão em gravadoras são melhores das que estão. Antigamente não era possível fazer isso. Hoje em dia as gravadoras prendem o artista mais do que antes. A gravadora marca shows e ganha porcentagem em cima, e o cara acaba ficando pre­so nessas paradas. É uma forma que eles veem de ganhar dinheiro, porque já não se vende mais tanto disco. Quem tem aparelho de cd em casa? Quase ninguém. Então, tipo, o caminho é a venda digital. Tô feli­zão com essa parada independente.

DMRevista–Você quis ser independente?

Sim. Sempre tive proposta de gra­vadora. O disco Enxugando Gelo, de 2001, foi todo feito de forma in­dependente. Na época, quem lan­çou foi o Lobão que tinha uma revis­ta cultural chamada Outra Coisa. Foi a revista que mais vendeu nas bancas. A galera perguntava “ah, como faz para lançar um disco na tua gravadora”. Eu dizia “pô, vai lá falar com o Lobão”. Era o meu jeito de dizer não. A gente sempre teve total liberdade para fazer o que quisesse com qualquer disco nos­so. Foi o primeiro disco comercial a ser lançado na internet. Eu ia nos jornais falar isso. Neguinho ficava puto, porque na época esse discurso era completamente fora de tudo. A notícia era sempre sobre pirataria e os caras ficavam de cara porque a gente chegava no programa do Jô Soares e falava “ô, baixem o nosso disco aí”. Sempre a reação era “que é isso, não pode falar isso”.

DMRevista–Diziam que essa postura era uma espécie de “suicídio comercial”.

Exatamente. Só que isso aca­bou levando a gente para o mun­do todo. Chegamos a fazer shows lotados em Londres, Barcelona... A gente botou o disco no site CMI, que é um dos pares do MPL, inclu­sive. É um dos principais centros de mídia independente, uma parada anarquista. Foi pai de um monte de coisa. É pai até do youtube, porque foi um dos primeiros caras que fize­ram esse tipo de tecnologia.

DMRevista–É uma galera cyberpunk?

Isso. Era tudo horizontal. E era um site de notícias de guerrilha. Você botava lá as coisas que esta­vam acontecendo nas manifesta­ções. Não existia outro lugar que fizesse isso. Existia só a grande mí­dia. Aí lá mostrava, por exemplo, a polícia batendo nos caras sem eles terem feito nada, sacou? Foi dessa tecnologia que surgiu o you­tube e uma série de outras para­das. Foi o grande centro de hac­ker anarquista mundial.

DMRevista–E aqui no Brasil, como era?

Demorou para chegar toda essa novidade. A gente teve um proble­ma brutal em São Paulo, porque nosso empresário na época marcou um show no mesmo dia que o Pla­net. A regra era assim: quem mar­car primeiro tem a data. O Planet já tinha marcado. Aí o cara mar­cou, a cidade ficou cheia de cartaz, todo mundo falando do show do Enxugando Gelo, a mulher ficou bolada logicamente porque a gen­te não pode ir lá. “Vou vetar vocês na cidade”, ela falou. Ficamos três anos sem poder tocar em São Pau­lo. Ninguém tocava a gente em lu­gar nenhum. Era uma coisa mui­to diferente. Era uma época em que tudo era compartimentado, sacou? Era contra as leis da parada.

DMRevista–Como surgiu sua relação com o Nação Zumbi?

Em 1993, ou 1994, a gente esta­va querendo penetrar numa festa. A gente era bom nisso, mas naquela es­tava difícil. Aí, tinha um segurança grandão, cara bravo mesmo. A gente estava criando uma estratégia para ver como iríamos furar o bloqueio e tal. Todo mundo durasso. Daí ouvi um cara do meu lado com sotaque diferente. Pensei, porra é da Bahia? Aí eu fui lá e perguntei: moço, que sotaque é esse? “Pernambuco, Re­cife”, respondeu. Ah, massa, falei. Vi na semana passada uma banda no programa do Serginho Groisman lá do SBT (quem ganhasse estava den­tro de uma coletânea, que não saiu nunca). Era o Nação Zumbi. Chico Science (morto em acidente de car­ro em 1997) estava ali. Ficamos con­versando. Era antes do Da Lama ao Caos (lançado em 1994). Entramos junto com a banda e eles chama­ram a gente para tocar no final, todo mundo. Speed (baixista do Planet Hemp, assassinado em 2010) falou para o Alexandre Dengue (baixista do Nação Zumbi): “me dá esse bai­xo que eu toco melhor do que você”. Foi assim que a gente se conheceu.

DMRevista–É uma parceira de longa data.

Sim. Sempre fizemos coisas juntos. Desde a época do Chico Science. Só que sempre invadindo, chegando em festival e tal. Essa foi a primeira vez que a gente en­saiou. Ensaiamos uma hora. Foi ótimo. Deu tudo certo.

DMRevista–Você está feliz de estar em Brasília?

Felizasso.

Existe uma tendência mundial que é a política do medo, né? É de onde Bolsonaro veio. Ele surgiu disso. É fruto de programa policial, de jornalismo que enxergou que essa parada de violência gera audiência”   Só para deixar claro: não sou muito chegado a gravadora. Saí deste sistema em 2001 para nunca mais voltar”

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