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Ateliê junta boa gastronomia, referência a Clarice Lispector e arte em casarão Art déco

Lá fora chove. Subo os degraus que dão para o ateliê. Na parede à minha direita, como se estivesse me encarando numa posição de rainha da literatura brasileira, a escritora Clarice Lispector deposita uma máquina de escrever em seu colo. A fotografia é acompanhada por uma crônica que a autora publicou no saudoso Jornal do Brasil em 1968. “Uso uma máquina de escrever portátil Olympia que é leve bastante para o meu estranho hábito: o de escrever com a máquina no colo”, confessa Clarice.

Após passar o olho rapidamente pelo ambiente, identifico uma colagem do artista visual goiano Hal Wildson. Frida Kahlo estava no centro da tela. Sentamos, eu e minha companheira, na mesa posicionada ao lado. Era como se Frida, de alguma maneira, meio que sorrindo para nós, nos observasse enquanto avaliávamos o cardápio.

Esse é o Ateliê Pizza, Café e Arte, localizado na Rua 29, no Centro de Goiânia. Abrigada num casarão em arquitetura art déco erguido na década de 1940, a pizzaria proporciona uma experiência gastronômica acompanhada de Música Popular Brasileira (MPB) e canções carimbadas na memória coletiva. É o ideal para um rolê sozinho ou com amigos, à procura de prosear, mas fica melhor se for a dois, pois se pode servir de vinho para harmonizar com a pizza escolhida pelo casal.

A massa é mais consistente, assada no forno à lenha, o que dá uma textura diferenciada. E um charme. São poucos ingredientes, surpreendendo o paladar. O tamanho? De um prato convencional. O custo? Boa parte dos sabores vai da faixa dos vinte aos trinta, como Tachãna, feita de muçarela, linguiça suína artesanal, pimenta biquinho e cebola, até Menina, de muçarela, alho frio, abobrinha e grana padano. Para quem não dispensa a tradição, a Peperoni está na lista, na mesma média de preço.  

Com grana contada, optamos por pedir cerveja long-neck, que saiu R$ 9. A carta de bebidas oferece apenas dois rótulos, a Heineken, que custa R$ 11, e a Eisenbahn. Perguntamos se a casa oferecia taça de vinho, mas na ocasião estava servindo apenas um branco seco, que fica R$ 60. Ficou gravado em nossa memória a sensação de saborear uma boa gastronomia num espaço que foge do usual, ao proporcionar para o público um contato com excelente comida e arte à mesma altura.

Bela combinação: sensibilidade artística com requinte para confeccionar as camadas de sabor da iguaria. 

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Massa é mais consistente, assada no forno à lenha, o que confere uma textura diferenciada

À frente do Ateliê, estão o pizzaiolo Matheus Xavier Calaça e a barista Joselita Martins Pereira. Os dois conseguiram implantar, enquanto filosofia gastronômica, uma preocupação maior com a qualidade do que é servido ao público do que com o status. E mostram que, para sentir as texturas do prazer culinário, não é preciso desembolsar uma multidão de dinheiro. O custo-benefício é ótimo, cabe em qualquer bolso.

Sempre com a trilha sonora alternando entre o bluesman BB King e o jazzista Miles Davis, o casarão pede por um tour no andar de cima, enquanto você aguarda o pedido ou com a barriga cheia, degustando uma boa cerveja ou um bom vinho. No segundo piso, com mesas posicionadas no dentro das salas, tendo como vista uma parte do Centro, a história nos convida por um passeio. Foi na casa onde hoje funciona o Ateliê que nos primórdios de Goiânia era sediada a Secretaria Municipal de Cultura.  

Charmoso, elegante e vintage, o Ateliê integra a categoria de tesouros escondidos no Centro da metrópole. Em meio à especulação imobiliária, num contraponto à estética de moradia vertical que nos sufoca, o Sobrado Scartezeni aquece a cena cultural local, pois o espaço abriga artistas da cidade com exposições e discotecagens que reúnem os melhores nomes. É semelhante, por exemplo, ao que aconteceu entre 2018 e 2020 na Casa Liberté: valorizar nossa riqueza arquitetônica e trazer vida ao Centro.

Parafraseando Clarice Lispector na crônica “Elogio à Máquina”, que decora a entrada do Ateliê, tudo correu bem, correu suave. Por assim dizer, essa experiência provocou e aguçou nossos sentimentos. Inclusive pareceu impactar sutilezas. “O ruído baixo do seu teclado acompanha discretamente a solidão de quem escreve”, diz a escritora.

Pois é, a chuvosa noite de quarta-feira, 12, foi agradável. Graças ao Ateliê Pizza, Café e Arte. Tão agradável como ler essa crônica de Clarice, a rainha do jornalismo e da literatura brasileiras.

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