A luta para parir com dignidade
Diário da Manhã
Publicado em 15 de março de 2018 às 22:40 | Atualizado há 4 meses
Na procura por relatos a respeito de violência obstétrica nos deparamos com uma realidade cruel, as histórias e traumas na gestação e parto são muitas e repletas de falta de estrutura, preparo e empatia das instituições e profissionais de saúde. Entre as violências neste momento tão delicado estão: tratamento humilhante, agressões verbais, recusa de atendimento, privação de acompanhante, realização de intervenções e procedimentos médicos não necessários.
A violência obstétrica é mais uma parte durae traumáticada maternidade para várias mulheres. Os profissionais de saúde possuem um certo respaldo em suas posturas, que tornam essas práticas veladas em muitos casos. Agregado a isso a fragilidade, na qual essa situação deixa muitas mulheres, causa um recuo no momento de denunciar. A violência obstétrica atinge uma em cada quatro mulheres nonossoPaís, deacordocomoMinistério da Saúde.
Thallita Ramos integra o coletivo Roda de Parto Natural Goiânia e é professora de enfermagem na UEG de Ceres, ela conta sobre as atividades na busca de partos humanizados: “Sobre o Roda de Parto é um coletivo de mulheres, mas também abrimos para companheiros e acompanhantes em geral, vai sogra, vai amiga, vai quem quiser. Nós tentamos empoderar a mulher para que ela tenha um parto com dignidade, um parto humanizado, depreferência umparto natural. Enósescutamosmuitasqueixas de violência obstétrica, que já começa durante o pré-natal, médico fazendo bullying com o peso delas, com a idade, com comentários como ‘com um quadril desse você não vai conseguir parir nunca’. A imagem que elas têm, sobreoparto, éaquelecheiodeviolência, aimagemqueveiodegeraçõesanteriores que é desse parto cheio de intervenção. Nóstentamosdesconstruir isso, então também somos um coletivo feminista.”
A respeito do grupo de apoio Thallita conta que se trata de uma composição muito diversa: “A gente tem mulheresdetodasasclassessociais, todas asidades. Temtambémnogrupotentantes, mulheres que estão tentando engravidar. Nós sempre escutamos este tipo de relato e a maioria nem sabia queaquiloeraviolência obstétrica”. Às vezes elas vêm contar “no primeiro partoelescolocaramsorinhoemmim”. Durante o trabalho de parto por vezes osprofissionaisdizemasgestantesque vão aplicar um “sorinho” que na verdade é ocitocina sintética. A ocitocina é umhormônioproduzidopeloorganismo para gerar as contrações do útero durante o trabalho de parto e a liberação do leite materno, mas existe também a ocitocina sintética, introduzida através de soro, que apenas gera contrações e não faz os outros papéis do hormônio natural.
PROGRAMAS VERSUS PRÁTICAS
Thallitarelataalgumasdashistórias de abuso e violência contadas dentro docoletivo:“Teveumamulherquenos contou que no primeiro parto dela foram 10 residentes de medicina, veio o professor fez o toque e na sequência os dez estudantes de medicina fazer o toque e ela não sabia que ela podia falar não”. Ela também aponta a deficiência na humanização dos partos na capital goiana: “O cenário de humanização que temos em Goiânia, quanto a profissionais, é ruim. Temos um ououtromédico e equipe de parto domiciliar, de enfermeiros, que a gente pode falar que são humanizados. Mas é difícil a mulher parir com dignidade aqui em Goiânia, com o cenário que a gente tem”.
OMinistériodaSaúdetemumprojeto de Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, que visa em suateoriapromovermudançasnaprática clínica; Diminuira variabilidadede condutasentreosprofissionaisnoprocesso de assistência ao parto e reduzir intervenções desnecessárias no processo de assistência ao parto e consequentemente os seus agravos. Mas de acordo com Thallita ele não vem sendo praticado com frequência no ambiente hospitalar: “De uns dois pra cá o Ministério da Saúde lançou um pacote de medidas para evitar o número de cesarianas agendadas antes das 39semanas, queeraemtornode85%”.
A professora continua: “E aí o que aconteceu, os hospitais tiveram que se adequar a essas regras e agora está tendoessabuscamaiorpelopartonormal, o problema é que o parto normal que a grande maioria dos profissionais aprende a fazer na faculdade, isso eu falo porque sou professora no curso de enfermagem na UEG de Ceres, é aquele parto tradicional com pique, com ocitocina no soro, repleto de intervenção, isso é absurdo, a mulher precisa ser deixada em paz pra parir. Esses partos com intervenção é o que eles aprenderam a fazer e como agora eles têm que obedecer estatística se não dói no bolso, o hospital tem que prestar conta do atendimento pro Ministério da Saúde”.
Thallita avalia que apesar dos programas que incentivam o parto normal, os procedimentos humanizados ainda não são uma realidade disseminada: “Os planos de saúde estão lançando campanhas como o ‘Parto Adequado’, mas não é o parto humanizadoésóonormal, vaginal. Estamos percebendo que conforme aumenta o número de mulheres procurando um parto normal esses casos de violência estão vindo mais a tona, e isso a genteescutatantonoSUSquantoplanos de saúde.”
A BUSCA DE UM PARTO DIGNO
“Na minha primeira gestação tive um parto roubado, eu tinha 19 anos e o médico inventou um motivo pra fazer uma cesárea em mim. Nem em trabalho de parto eu estava, foi tão horrível pra mim, tão traumatizante que eu não queria ter filhos nunca mais. Quando minha filha mais velha tinha 6 anos eu engravidei e decidi, eu vou parir agora, porque tinha ficado aquilo mal resolvido. Eu fiquei com o umbigo torto da cesárea e não conseguia pensar no meu parto sem vontade de chorar, não foi uma experiência feliz”, conta Thallita a respeito de sua experiência como parturiente.
Thallitaprosseguecontandocomo foioprocessodesuperaçãodoseuprimeiro parto: “Quando engravidei novamente conheci uma doula. Essa doula chegou trazendo informação pra mim, foi a melhor coisa que podia ter acontecido comigo”. Doula é uma mulher que orienta e assiste a mãe no parto e nos cuidados com bebê. Seu papel é oferecer conforto, encorajamento, tranqüilidade, suporte emocional, físicoeinformativoduranteeste período.
Thallita fala sobre sua saga na procura por um parto digno: “Na minha segunda gestação também sofri violência obstétrica, o médico chegou fazendo toque, começou a forçar e percebi que ele estava fazendo uma manobra que a gente chama de descolamento de membrana, utilizada para induzir o parto, para acelerar por algum motivo. Eu não estava em trabalho de parto, estava com 37 para 38 semanas e fugi desse médico e abandonei meu pré-natal. Eu chorava, rezava, pelo amor de Deus nãome deixa parir agora porque meu filho não está pronto. Liguei na ouvidoria do Ipasgo e nada, o médico continua atendendo lá até hoje. Larguei o Ipasgo e fui parir lá na maternidade Nascer Cidadão, lá tive um atendimento muito melhor, mas ainda sofri violência, principalmente psicológica durante o parto, masfoimenostraumático. Quando mevigrávidapelaterceiravezopteipor parir em casa e tive minha terceira filha em casa com uma equipe de enfermeiros do parto humanizado. Dos meustrêsfilhosoúnicoquechegoude forma respeitosa ao mundo foi a Lua, minha caçula, o meu melhor parto foi o que tive em casa”.
A cesárea também envolve a violência obstétrica, pois em muitos casos este tipo de parto é pressionado pela equipe de saúde contra a vontade da mãe e sem necessidade médica. Os resultados do estudo “Nascer no Brasil: Inquérito Nacional” apontaram que 66% das mulheres preferiram o parto normal no início da gravidez, o que é o natural e esperado. Todavia, somente 59% tiveram esse tipo de parto. Bianca Melo conta que seu parto envolveu uma cesárea sem necessidade e violência psicológica por parte dos profissionais: “Na desnecesárea que tive, sofri preconceito por causa das tatuagens. Fizeram piada dizendo que chamaria o conselho tutelarparamim, poisseriabemcapaz queeutatuariaacaradosmeusfilhos”.
Janaína Soldera, cantora goiana, fala como o seu parto foi cercado por descaso e sua participação nas decisões foi ignorada pela equipe médica: “Não me disseram que havia necessidadedeumacesárea. Nuncame falaram nada acerca. Era uma segunda a noite. Eu fui ao banheiro e comentei com o Kleuber: vou logo pq quero ver o top five (quadro do antigo programa CQC). Ao chegar no banheiro, saquei que não era só urina mais. Minha bolsa havia estourado. Daí começou a saga. Como nunca havia passado por essa situação, e também por me tratar de filha adotiva, fiquei sem nenhuma orientação. O que me ocorreu foi, vamos para o Materno Infantil. Afinal de contas, é uma referência. Chegando lá, esperei por horas. O Materno não podia me acolher por falta de leitos. O médico que estava lá de plantão fez a contagem entre uma contração e outra, e o exameparaidentificaroscentímetros dedilatação. Aindanãoeraosuficiente. Fui encaminhada para a recepção do Materno, para ficar aguardando a liberação de alguma vaga em alguma maternidade de Goiânia. De repente ouço meu nome e a informação que havia liberado uma vaga na MaternidadeCoraçãodeJesusemCampinas. Mas não havia ambulância. Eu respondi que ia com meu irmão. Pegamos os documentos e partimos pra essa Maternidade. Chegamos lá na madrugada já. Dei entrada e fui informada que ninguém poderia ficar comigo. Já nos bateu um desespero a mais. Me senti muito mal. Um sentimento de abandono, medo, impotência”. Oimpedimentodeumacompanhante durante o parto também é considerado violência obstétrica.
Janaína relata que a cesárea foi para ela uma absoluta surpresa: “Havia uma enfermeira, já senhora, que estava de plantão naquela madrugada. Um tipo já bem vivida, simples, no meu imaginário, lembrava bastante uma parteira e era a figura que me parecia mais amável, um tipo mãezona, vó. Fiquei um pouco mais tranquila. Mas não tinha nenhuma informação sobre como seria o meu parto. Logo o dia amanheceu essa enfermeira foi embora e vieram outras com uma espécie de lista de sequência de cesáreas ‘Primeiro você, depois ela, depois fulana e por fim beltrana”’. Achei surreal, resolvi perguntar como seria aminhasituação, poisatéaquelemomento eu não havia sido examinada por mais ninguém. Ela disse que eu seria a segunda na sala de parto cesáreo. Apavorei porque não estava contando com isso e nem tinha ninguém ali comigo”. “Você esperava por um parto normal?” “Tudo indicava que seria um parto normal. Não houve sequer durante a gravidez indícios de que seria cesárea, tampouco me examinaram pra saber se a criança estava na posição correta ou não. Simplesmente fui encaminhada para o parto cesáreo.”
Janaína ainda conta que não pode pegar seu bebê no colo e sofreu violência psicológica durante a anestesia:“Entrei8horasnasaladeparto. Eu estava no quarto e chorava compulsivamente. Nada mais desumano e frio que um parto assim. Mal vi a Amora, só tenho a certeza de que ela é minha filha pois no dia ela era a única menina nascida. Eles me falaram ‘olha a sua zoiuda’ e a levaram não sei pra onde. Nem a Peguei no colo. Quando ela veio a mim novamente, nem fui a primeira apegar. OKleuber haviachegado na maternidade e a enfermeira veio com a Amora e entregou direto nos braços dele. Contudo, o que importa nesse relato é que a anestesista do meu parto foi absolutamente violenta comigo. Gritou comigo, disse pra eu ficar quieta, pra não me mexer. Comecei a chorar e a gritar porque são coisas apavorantes, te abrem e começam a tirar a criança de dentro de você. Eu sentia os movimentos bruscos e aquela falta de tato. Minha costela parecia que ia se partir. Não sentia dor, mas meu corpo era manipulado como uma banda de boi. A sensação maisterríveldomundo”. Eaanestesista gritava: “Credo, deus me livre, cala a boca. Se fossenormalnãoaguentava.”
RELATOS DE VIOLÊNCIA
MYLENA NOGUEIRA ROCHA, DESCASO E PROCEDIMENTO INVASIVO
“Tive dois filhos o meu primeiro parto foi até humanizado mas acho que uns 20 médicos residentes ficou me usando pra aprender a fazer toque mesmo eu reclamando que dói e que incomoda. Do outro foi o inferno não tive acompanhante não tinha higiene no local. Seis mulheres sofrendo e chorando foi uma ajudando as outras. Assim que eu dei entrada no hospital já colocaram o maldito soro. E assim com todas as outras mães que foram chegando o que ocorreu é que praticamente 22 mulheres entraram em trabalho de parto ao mesmo tempo. Tinham duas enfermeiras e um médico. Algumas mães tiveram a criança na cama mesmo e eu quase tive o meu no banheiro gritei que ele estava nascendo, elas não acreditaram fui até o corredor e mostrei a cabeça dele saindo. Entrei na sala de parto deitada na maca, elas correndo, só me lembro do meu filho saindo e eu ouvindo a luva estralar na mão do médico, isso mesmo meu filho quase caiu no chão. Fora isso depois de quase 4 horas que consegui ver meu filho, eles também tinha usado produtos de higiene nele que eu não tinha fornecido, pois tudo que comprei era neutro.”
MARIANA LOPES, VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NO PRÉ-NATAL
“Então, no começo de setembro do ano passado eu descobri que estava gestante.
Com 7 para 8 semanas eu comecei a sentir muitas dores, fui no plantão e ouvi o médico dizendo que meu colo do útero estava fechado, e que estava tudo bem.
As dores continuaram em uma escala desproporcional, fui em outra maternidade que a médica nem tocou em mim, não quis me examinar, disse que era ‘coisa da minha cabeça’ e me mandou de volta pra casa. A minha médica infelizmente não estava na cidade, mas ela me disse pra ir novamente na maternidade até conseguir um pedido de ultrassom. Eu praticamente tive que brigar com a médica plantonista porque ela continuou dizendo que era coisa da minha cabeça. O inferno começou na manhã seguinte. Fui a uma clínica bem renomada aqui de Goiânia, clínica essa que tinha feito meu primeiro ultrassom. A mesma médica me atendeu, quando ela notou algo diferente chamou um segundo médico. Ele enfiou o aparelho em mim e começou a apertar de forma que estava machucando muito. E aquele exame não era para machucar, eu comecei a me remexer incomodada e ele começou de forma rude a me mandar ficar quieta. Depois disse que eu poderia desistir de ser mãe. Assim, exatamente com essas palavras. Eu tinha acabado de descobrir que provavelmente meu filho tinha morrido e ele falou que eu deveria desistir.
Depois começaram os sangramentos. Eu não sabia o que estava acontecendo, estava desesperada e destruída emocionalmente. Fui na minha médica e ela me mandou fazer uma ultrasom novamente pra contatar se havia tido um aborto retido (quando o bebê para de de desenvolver). Fui nessa clínica novamente, uma outra médica me atendeu porque era uma atendimento de emergência. Ela falou que ‘tínhamos que fazer o exame rápido porque eu estava sangrando aquilo era desconfortável pra ela’. Quando o exame começou, ela virou pra mim e disse ‘ó, o embrião parou de desenvolver, não tem mais batimentos cardíacos’. Eu estava desesperada, desolada, comecei a chorar e falei ‘doutora, você tem certeza?’ E ela‘você é burra? É cega? Não tem batimentos’. Eu só queria sair dali correndo. Quando eu saí da sala sentei sem forças na recepção e chorei tanto. Todas essas atitudes dificultaram demais que eu me recuperasse, me senti culpada por muito tempo. Foi horrível. Não foi uma violência física, mas a violência obstétrica psicológica é muito ruim, muito mesmo. Você se sente um lixo por muito tempo”
CASOS QUE SÃO NECESSÁRIOS A APLICAÇÃO DO “SORINHO”, OU SEJA, A OCITOCINA SINTÉTICA:
Iniciar o trabalho de parto quando o mesmo não ocorre naturalmente;
Regularizar as contrações quando elas não estiverem efetivas ou quando for diagnosticado que o trabalho de parto não está evoluindo da maneira mais adequada;
Contrair o útero após o parto ou aborto, quando o sangramento está abundante e pode ocasionar hemorragias.
AS ORIENTAÇÕES DO MINISTÉRIO DA SAÚDE APONTAM QUAIS OS CASOS NECESSÁRIOS PARA A REALIZAÇÃO DE CESÁREA:
– Sofrimento fetal – quando o bebê não está bem e o nascimento precisa acontecer emergencialmente;
– Apresentação córmica – quando o bebê está atravessado durante o trabalho de parto;
– Hemorragias durante a gravidez – quando há descolamento da placenta ou placenta prévia (quando a placenta recobre o colo do útero);
– Mãe portadora do vírus HIV – as chances do bebê ser contaminado com o vírus cai para 50% na cesariana;
– Herpes genital – o bebê tem maiores chances de contrair a doença no parto normal;
– Prolapso do cordão – quando o cordão umbilical sai antes do feto. Quando isso ocorre no parto normal, o cordão fica tensionado, impedindo que o sangue passe para a criança.