
Ao lado dos poetas Hilda Hilst e Roberto Piva, o escritor Plínio Marcos forma a santíssima trindade da marginalidade literária brasileira. Sua obra, polêmica e transgressora, se tornou conhecida pela abordagem realista em histórias vivenciadas por personagens das classes sociais menos favorecidas, numa escolha nada óbvia de levar aos palcos a cultura popular. Plínio se identificava, antes de ser dramaturgo ou cronista, como um repórter dos tempos em que vivemos, aquele que observa as gírias e fica atento às situações cortantes da vida.
Era dos bons. Mesmo não filiado a nenhum partido político brasileiro, virou alvo da repressão durante a ditadura, pois lapidou uma linguagem forte e abordava temas que deixavam a tradicional família brasileira assustada, como a homossexualidade ou prostituição. Um desses episódios, por exemplo, ocorreu no Teatro Opinião, em São Paulo, na ocasião em que a peça “Navalha na Carne” foi impedida pelo Exército de estrear.
Na tentativa de aproximar o público dos personagens, o coletivo goiano Humanum leva hoje, às 20h, ao Charminho da Araguaia o texto de Plínio. “A escolha da apresentação em um bar é a partir da perspectiva de tirar o teatro dentro da sua formação convencional e também levar para o centro da cidade, que hoje está marginalizado, se aproximar do público em espaços do cotidiano e fazer com que a plateia participe e sinta o ambiente dos personagens, sem uma separação entre palco e público”, afirma o produtor Matheus Freire.
Para ele, a Goiânia contemporânea se esvazia, marginaliza o Centro e se fecha nas muralhas de seus condomínios. “Trazer à cena personagens plinianos, tendo enquanto espaço cênico uma casa art déco, reduto da aristocracia goianiense, abre as portas ao submundo de Plínio”, reflete o produtor, em entrevista ao Diário da Manhã. Ele destaca ainda o flâneur, conceito criado pelo filósofo Walter Benjamin para a cidade e suas ruas como moradia. “O texto de Plínio Marcos rasga porque atinge o que escondemos em nossos ‘quartos’ enquanto ser.”
Se, nos anos 1960, havia a repressão dos militares, o ano de 2022 reserva aos brasileiros o fantasma da ditadura. Cabe lembrar ainda que Plínio Marcos, mestre das palavras, retrata na peça uma cidade à margem, ou Santos - no litoral paulista - e suas conexões com o mundo. “O reduto desse submundo pliniano é o que se constrói aos personagens”, diz Matheus.
Bordel sórdido
Levada ao público pela primeira vez em 1967, o espetáculo se passa num quarto de bordel sórdido. A prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o homossexual Veludo, empregado do estabelecimento, encarnam a existência subumana. E por motivos óbvios, que é essa opção pela marginalidade, a montagem não caiu no gosto daqueles cuja atribuição era vetar obras de arte desagradáveis à estética, aos costumes e à moral. Não deu outra: censurada.
Vivia-se o prefácio, nas palavras do crítico Yan Michalski, em “O Teatro Sob Pressão”, daquele que seria “talvez o ano mais trágico de toda a história do teatro brasileiro”: 1968. Nesse clima de radicalização, os atores Walmor Chagas e Cacilda Becker chamam o grupo de artistas que trabalhavam em “Navalha da Carne” para a cobertura do apartamento deles com a intenção de mostrar para intelectuais a força do novo espetáculo teatral.
Quem ali estava assinou até parecer, que seria encaminhado para o ministro da Justiça, Luiz Antonio da Gama e Silva, no qual se protestava contra a proibição do espetáculo, como também se pedia a liberação imediata. A encenação paulistana aconteceu em setembro de 67, poucos meses antes de 1968, ano que não terminou, segundo o jornalista Zuenir Ventura.
Segundo Michalski, autor de “Reflexões Sobre o Teatro Brasileiro”, a autenticidade psicológica dos personagens, a clareza deles em sua integração com o submundo e a densidade do clima exercem um fascínio no público. “Não escapa nem o público mais conservador, a priori menos disposto a enfrentar cara a cara a crueldade e a violência”, analisa o estudioso, no livro seminal para entender as tensões políticas que calavam o teatro.
O mérito do enorme sucesso feito recai nas costas do diretor Fauzi Arap, que começou sua carreira ainda na fase amadora do Teatro Oficina. Ele busca obter o máximo de sintonia entre o texto e as ideias expressadas pelas personagens em cena. Sem fazer concessões ao público, explora a violência física, que estoura na vida interior das personagens. Tônia - nem precisa falar - dá show, numa construção emocional e detalhada do papel. Segundo os críticos do período, por causa do trabalho, a imagem apolínea ficou distante da atriz.
Cenas de segundo plano
“Por mais que os grandes momentos dramáticos me tenham emocionado, a lembrança mais forte que guardarei do seu desempenho é a das suas cenas de segundo plano, quando, com gestos apenas esboçados ou com discretas reações fisionômicas, ela traduz a poética e atormentada alma de Neusa Sueli”, afirma Yan Michalski, ainda em “Reflexões Sobre o Teatro Brasileiro”. A obra é referência no estudo histórico das artes cênicas brasileiras, especialmente as peças reprimidas durante o regime militar.
O escritor Plínio Marcos, que foi colaborador da Folha de S. Paulo a convite do jornalista Tarso de Castro nos anos 70, renovou a dramaturgia brasileira ao dar enfoque naturalista. Nascido em 1935, admirava Patrícia Galvão, a Pagu, autora do romance “Parque Industrial”. Morreu em 1999, quando sua saúde declinou por conta de um AVC. Estava com 64 anos.
Anote aí
Navalha da Carne
Bar Charminho da Araguaia
Av. Araguaia, 204, Centro
Hoje a amanhã
20h
Elenco: Renata Curado, Zé Mário de Araújo e Guto Rocha
Direção: Allan Lourenço e Kárita Garcia