Fazenda Babilônia
Redação
Publicado em 11 de março de 2018 às 00:44 | Atualizado há 7 anos
A vilaboense, Mariana Augusta Fleury Curado, conhecida como Nita Fleury (1897/1986), de fantástica herança cultural, publicou em 1981, o livro: Rua do Carmo, reunindo crônicas e artigos de natureza memorial. Dele retiramos a visita que ela fez à Fazenda Babilônia, antigo Engenho São Joaquim, no município de Pirenópolis, que deu origem a crônica com doses de ficção logo a seguir. Seu construtor Joaquim Alves de Oliveira é uma das mais importantes personalidades da historiografia goiana do século XIX:
Babilônia–já o nome indica grandiosidade. Fazenda situada num recanto verde. Ao longe, no horizonte, uma serra ao sopé da qual árvores frondosas lembram exército à espera do inimigo–o Homem.
Fazenda construída em 1800, nas proximidades de Meia Ponte (Pirenópolis), por Joaquim Alves de Oliveira, “o magnânimo”, no expressar do poeta goiano Florêncio A. da Fonseca Grostom, ao descrever o surto de varíola que assolou a região, sendo Meia Ponte preservada do fla¬gelo devido às enérgicas providências tomadas por Joaquim Alves, isto pelo ano de 1811.
Joaquim Alves de Oliveira, homem de grande capacidade de trabalho, foi dono da maior e mais próspera fazenda da então Província de Goiás, cuja organização e trabalho eram notáveis. Ali a ociosidade não achava guarida.
Além de gerir a fazenda, Joaquim Alves repartia sua ativida¬de em diversos setores. Fundou o jornal “Matutina Meiapontense”, sob a gerência do Padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, também foi Vereador, Juiz de Paz, Coronel de Milícia, ocupando ainda vários cargos eletivos de projeção, enfim, era um homem pra-frente, no fa¬lar de hoje.
Ficaram na memória do povo a personalidade “sui qeneris” de Joaquim Alves e a dolorosa tragédia de sua família.
Uma comitiva, composta de 25 pessoas, quis conhecer “in loco”, a afamada fazenda e aproveitando um dia cheio de sol rumou para Babilônia, Esta, à primeira vista, é um velho casarão, escurecido pelo tempo, O telhado tem um declive sensível ficando cumeeira muito alta.
Na entrada, currais de pedra, serviço de escravos que, sem o uso de cimento e da “ciência” dos pedreiros de hoje, colocaram as pedras tão bem justapostas que o correr do tempo, com seu séquito de destruição, ainda não conseguiu destruir de todo.
Grande gameleira viçosa, tendo o muro como quarda-costas saçarica sua folhagem verde-gaio, ao sopro da brisa,
Um alpendre longo ocupa toda a frente da casa, o parapeito encimado de madeira de lei revela, pelo lustro, o muito uso. A atenção de quem adentra o alpendre é dirigida a uma caveira de boi, dependurada no alto de uma trave de aroeira, É uma caveira de grandes dimensões, as órbitas vazias olham o nada que as envolve. Os chifre: imensos, descomunais, retorcidos, um em direção ao interior da casa e o outro ainda dá mais uma reviravolta para cima,
– De que raça seria… curraleiro?
– Não–responde o informante, O gado curraleiro tem chifres menores e em sentido mais horizontal. É de uma raça desaparecida, chamada “Pedreira”. Com a introdução do gado hindu, o nelore, essa raça foi se misturando e ficou superada’,
A caveira enorme, com seus chifres babilônicos, foi a primeira curiosidade do velho solar.
No fim do alpendre fica a capelinha identificada por um cruz, ao lado, preso no alto, um sino. A porta larga da capela-oratório deixa ver o pequeno altar, de três degraus. No último, Nossa Senhora da Conceição sorri. Os degraus têm esculpidos na própria madeira florões e arabescos, Castiçais de prata, com pingentes de cristal, também de prata o cálice, a sineta e uma estante para o missal.
Do lado esquerdo, pequena janela dando para um pátio e do lado direito uma janela maior com venezianas de estilo mourisco grades cruzadas. As dobradiças são presas ao peitoril interno de modo que, ao ser aberta a janela, as tolhas descem ao longo da parede da sala vizinha, cujo assoalho está em nível inferior ao da capelinha. Dali Os senhores poderiam assistir a missas, batizados, casamentos, sem se ombrearem com os negros, que se aglomerariam pelo alpendre.
A capela-oratório é o único cômodo estucado do velho solar, onde figuras bíblicas, desbotadas, indicam a grandeza do passado. No centro, um candelabro de prata com mangas, pingentes, tudo a brilhar.
Num canto do alpendre, um banco longo de madeira de lei, junto à porta que leva ao grande salão, onde fora o engenho de fabricação de farinha. Alto, muito alto, o telhado é sustentado por vigas de aroeira, num travamento colossal. Foi trabalho de verdadeira engenharia e deve ter custado muito suor de negro e muito canto de, chicote o levantamento, até àquela altura, das madeiras pesadíssimas. Estas desafiam o tempo tal como a fama de honradez e trabalho de Joaquim Alves e a triste história do amor de Ana Joaquina e do atrevido capataz Justiniano.
Num plano inferior estava a sala onde se descaroçava o al¬godão em máquinas movidas a água. O algodão ensacado seria re¬metido para o Rio, Bahia e Mato Grosso. Num plano superior se en¬contrava a sala de jantar, separada por uma grade de madeira recorta¬da em florões, que não vedava a visão e de onde poderia o senhor supervisionar a moagem de mandioca e a moenda de cana. No fim da sala, há um gavetão encaixado na parede, duas argolas servem de puxadores. Aberto o gavetão aí eram colocados os pratos de re¬feição dos senhores e, fechado, saía na outra sala, reservada à família.
A comitiva, curiosa percorreu a casa toda, o corredor longo com quartos de ambos os lados; do esquerdo, quartos e alcovas maiores indicando serem destinados a pessoas da família ou hóspe¬des. O teto muito alto favorecendo a temperatura que é sempre agradável. A parte superior das portas e janelas, de madeira lavrada, ar¬redondada.
_ Quem teria tocado o sino?! Seu som, de há muito adorme¬cido, espalhou-se, demoradamente, pelo ar e foi despertar as sombras que presenciaram o trágico acontecimento de 1º de maio de 1833. O som do sino, esquisito, foi se diluindo no espaço e uma neblina densa se desprendeu do muro do lado da senzala e veio chegando e envol¬vendo o casarão … o sino sempre a tocar … vultos de escravos acor¬reram, apressados, para a Casa Grande, negras com filhos engancha¬dos na cintura, pretos cambaios, com passo vacilante, todos atendiam ao repique do sino.
Agora o repiquete é de alarme. Um negro alto acompanha a Sinhá Velha que, nas pontas dos pés, encaminha-se para o quarto da filha. Ouve-se um tiro. Que será? .. Um vozerio de escravos e, den¬tre a densa neblina que enche o corredor, surge o vulto másculo de Justiniano tendo ainda na mão a garrucha. Aos gritos, Ana Joaquina aparece descabelada e tenta segurar o capataz.
O badalar do sino agora é fúnebre Um grupo de escravos carrega Sinhá Velha, toda ensanguentada, e a deita no banco longo do al¬pendre.
Benedito, preto caneludo, ajoelha-se perto do corpo inanimado da velha Sinhá e soluça:
– Minha Sinhá, minha Sinhá, seu sangue tá pedindo vingança e vai sê vingado–e, num rompante, grita para os escravos apalermados: toca esse cachorro para a vila e depressa.
Justiniano, aos safanões, atravessa o curral no meio dos es¬cravos tem o rosto coberto de sangue. Seu chicote presente da Sinhá moça está na mão de Benedito que, de vez em quando, lhe dá uma chicotada. Os pés grosseiros dos negros pisam o capim verdinho e os lírios dos campos, pois era maio, o mês das flores.
Justiniano geme baixinho mas não pede clemência, pra quê?
– Tamo perto da vila, daqui lá é um tiquinho de nada.
– Vamo acabá cum esse fé da mãe aqui mesmo
– grita Benedito e com rapidez, depois de esfregar a garrucha no rosto do capataz, despeja-lhe toda a carga.
Justiniano, erguendo as mãos, rodopiando, num balanceio desengonçado, cai de borco e aí fica.
No céu azulado, os urubus em volteios simétricos preparam¬-se para a aterrissagem.
A neblina cerca mais o velho solar. Ali somente a caveira tem vida com suas órbitas brilhantes, como se tivesse fogo dentro delas.