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“Há aquilo que podemos ver, porque existe um circuito literário”

Redação DM

Publicado em 21 de outubro de 2022 às 23:51 | Atualizado há 3 anos

Defina, se é que isso é possível, a produção da poesia recente feita em Goiás? 

Não, não é possível definir a poesia recente feita em Goiás, mas é possível provocá-la a manifestações, questioná-la; e assim também é possível ouvi-la, debatê-la; e ainda, ou talvez antes, procurá-la fora das academias, fora da rota da crítica canonizada, nas iniciativas de auto publicação, nas publicações sem ISBN, nos coletivos de arte que trazem a poesia como uma de suas atividades estéticas, políticas e agregadoras. Esse é o objetivo do evento Poesia Recente de Goiás. Então, por evento, o professor Jamesson Buarque e eu, organizadores do encontro, entendemos não apenas a reunião de poetas, algo celebratório etc, como também buscamos um campo de observação, esperamos que um acontecimento se dê aos olhos dos participantes. A dúvida deve permanecer: que poesia é essa¿ onde ela circula¿ do que é feita¿ É claro que um recorte está dado. Quando surgiu essa necessidade de enxergar a poesia produzida no Estado de Goiás de 1917 até o presente momento (assim definimos o adjetivo “recente”), poderíamos recorrer a parcerias que nos ofereceria uma faceta dessa produção, como a União Brasileira de Escritores de Goiás (UBE), que faz um excelente trabalho de reunião de poetas conhecidos; ou a Bolsa Hugo de Carvalho Ramos que premia e publica poetas não conhecidos; e a Academia Goiana de Letras (AGL), que acabou de promover o Festival de Poesia Falada Léo Lynce, junto a a Livraria Leodegária, da cidade de Goiás – isso para citar apenas quatro de importantes instituições que visibilizam a poesia de Goiás. Mas o que nós queríamos: aquilo que não enxergamos bem, assim não temos certeza do que virá. Por isso, convidamos todas as pessoas leitoras, curiosas e estudiosas da vida cultural em Goiás a comparecerem a Faculdade de Letras da UFG nos dias 25 e 26 de outubro.

A produção literária goianiense nos últimos anos é marcada por polifonia de estilos e vozes. Em sua visão, qual é a principal característica dessa efervescência de obras lançadas? 

Retomando a metáfora da visão que usei anteriormente, há aquilo que podemos ver, porque existe um circuito literário em Goiás, especialmente em Goiânia (por motivos óbvios). Esse circuito define espaços ou talvez esses espaços montem o circuito: editoras, livrarias, associações literárias, grupos de pesquisa dentro das universidades. Esse circuito nos dá a ver uma multiplicidade de características das concepções de poesia que circulam. Isso é muito legal! Não há uma característica principal da poesia goiana, há, entre outras coisas, linhas editoriais, e vou dar três exemplos importantes na atualidade: a editora Nega Lilu, por exemplo, prima pela diversidade, pela abertura cultural e formal de seus poetas; há a linha editorial da Martelo que publica poetas mais ligados à imanência da forma; e também a Goiânia Clandestina, que vem abrindo espaço para poetas da periferia, com foco na negritude e na escrita de mulheres – as três linhas são complementares e produzem intersecções interessantíssimas. Saindo do critério “linha editorial”, outros aspectos poderiam ser citados, como o modo pelo qual a poesia se liga à performance nos concursos de slam, ou ainda a conjunção entre crítica da cultura e poesia das revistas literárias, como Justina, Tem base e Caroço (da divertidíssima e ácida editora Merda na mão). Agora, se for para pensar em algo comum nessa efervescência de obras lançadas, eu diria que esse gás borbulhante vem de uma tomada de consciência: há muito mais poetas do que supõe a nossa vã teoria. E é nessa tomada de consciência que vemos surgir com força as editoras de uma pessoa só, a auto publicação, a forte retomada dos Zines, a poesia feita no e para o instagram (há perfis pensados em função do formato poema), a organização de pequenos festivais e feiras. Há uma vontade de publicação somada a condições técnicas de publicação barateadas pelo desenvolvimento tecnológico. Ninguém acredita mais que é preciso esperar ter “um teto todo seu” para escrever e publicar. Ainda bem.

O editor William Shaw, por cujas mãos passou Hannah Arendt na New Yorker, dizia que editar é tornar o texto mais do autor. Na condição de co-editora de “Antes de Agora”, como foi trabalhar coletivamente pensando no todo da obra para organizá-la editorial e graficamente? 

Fico muito feliz em responder essa pergunta aqui, porque ontem foi o lançamento virtual do livro “Antes de agora” e eu não pude participar. Em primeiro lugar, vale dizer que eu fui uma entre oito editores supervisionados pela querida Larissa Mundim. “Antes de agora” é uma obra literária coletiva, produto final de Residência Literária da Livraria O Jardim, que reuniu 9 escritores/escritoras e 9 publicadores/publicadoras de Goiás. O livro é composto por contos e crônicas produzidos a partir dos cursos ministrados pelos renomados escritores Cidinha da Silva, Paulliny Tort e Tino Freitas. Nós, do eixo publicadores, fizemos quatro cursos relacionados ao processo editorial. Lemos os contos e crônicos juntos e separados, discutimos os textos literários como leitores apaixonados, criamos uma linha de raciocínio para definir a ordem dos textos ao longo do livro. Talvez esse tenha sido o maior desafio para mim, pois implica levar a discussão de crítica literária para uma materialidade que não tem nada a ver com escrita de artigo ou aula ou palestra, mas sim com o próprio objeto livro. Também aprendemos a pensar sobre papel, tinta, tinta no papel, papel em formato de caderno, ilustra ou não ilustra¿ mas o que é ilustração¿ tem a ver com o texto literário, não tem que ter… teve ilustração! Com desenhos de Álvaro Paiva, o conteúdo dos textos de “Antes de agora” perpassa questões existenciais, culturais e sociais marcadas pela pandemia da Covid-19. A edição e a concepção do livro foi realizada com consultoria da ilustradora Suryara Bernardi, do editor Paulo Verano, da designer Laura Del Rey, da produtora gráfica Lília Góes e com apoio técnico da designer Bia Menezes. Enfim, uma experiência enriquecedora porque se deu na partilha de nossa vivência com esse objeto sensível chamado livro. E assim, em grupo, aprendemos que um livro é sempre “algo a mais”: talvez uma sintaxe que enlaça pessoas em silencioso contato ou um palimpsesto de “estórias” que se acumulam e oferecem ao leitor esse “algo a mais” que a vida promete.

Já lhe fiz uma pergunta semelhante em outra ocasião, em que questionava a respeito das particularidades da escrita em prosa, verso e na sala de aula, mas insisto em voltar ao tema: quais são as diferenças da palavra nestas modalidades para o ofício editorial? 

Eu não sou editora, mas tem uma história que me traz a esse ponto de querer aprender, de admirar o ofício, de olhar para o livro e pensar na quantidade de gente que aquele livro específico conectou. Antes e depois de ter publicado meu primeiro livro em 2021, já orbitava em torno do processo de produção do livro. Ter sido livreira de sebo me trouxe o afeto por esse objeto que circula e faz circular. Há uma narrativa quase invisível desse modo de fazer cultura que é a publicação. Desde a alcalinidade da folha de papel de cada época, até as anotações e artefactos de memória que o livro coloca em trânsito – tudo isso faz desse “conjunto encadernado e impresso de palavras” uma experiência estética que nos localiza na história individual e coletiva. Ser professora me traz com frequência um maço de folhas escritas que desejam voar para o mundo. Leio, comento, incentivo à publicação. Escrever prefácios, posfácios, apresentações para livros de pessoas amigas próximas ou distantes também me fez olhar para o livro como um todo: capa, orelha, desenhos, inscrições, sumários são elementos de relação que fazem as palavras da prosa e da poesia deixarem de ser uma ideia ou folhas guardadas no útero da gaveta e transformarem-se em uma coisa outra. Entre o autor e o leitor, o caminho não é direto e reto. Tem o editor, o designer gráfico, o pessoal da gráfica, o livreiro, e talvez o leitor primeiro que vendou seu livro ao sebo e deixou dentro a nota fiscal da compra, aí vem um segundo leitor, um terceiro e… Toda essa rota invisível me interessa. Ela é feita de palavras que conheço na sala de aula como professora e crítica literária, mas essa palavra vibra em outra frequência na vida material do livro. 

A Faculdade de Letras da UFG realiza na semana que vem o evento “Poesia Recente de Goiás” em que se analisa a produção poética desta década, mas também de poetas que estavam em atividade no passado. Numa sociedade frequentemente desmemoriada, como a nossa, por que homenagear o escritor Luís Araujo Pereira? 

A homenagem Luís Araujo Pereira presta tributo à relevância da atividade desse poeta que foi integrante do Grupo de Escritores Novos (o GEN) de Goiás, formado em meados da década de 1960. Luís Araujo Pereira estreou em livro em 1968 com o premiado Ofício fixo (vencedor da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos), livro cujo perfil político, social e estético era filiado à Instauração Praxis, de Mario Chamie. Depois disso ainda veio a popularidade com Minigrafias (2009) e a tradução para o francês feita para a editora L’Harmattan (Poésie pour dire moins,2013). O poeta Luís Araujo Pereira é um dos poucos nomes do passado recente da poesia de Goiás que dá atenção à poesia nova que vai surgindo por aqui, se destaca também por ser uma referência declarada por jovens poetas. Luís Araújo não é um poeta esquecido, é um poeta que não teve o reconhecimento crítico merecido, e nossa homenagem pretende ser um gatilho para novas e mais aprofundadas leituras de sua obra que, admiravelmente, está em permanente reelaboração. Inclusive, vem novidade do poeta Luís por aí. Vale a pena ligar as parabólicas – aff que metáfora velha para uma sociedade que já chegou no 5G, mas viva Chico Science!

Ao voltar para o passado, nota-se que os autores se organizavam para fazer fanzines, criavam saraus e publicavam de forma recorrente em jornais ou revistas. Olhando o sumiço da pauta literária dos veículos – digamos assim – gutemberguianos, quais são os caminhos hoje para disseminar a literatura e, de quebra, resistir contra o fascismo? 

Acho que é essa faísca que o professor Jamesson e eu captamos ao idealizar o evento: voltamos a sentir esse frisson Do it yourself novamente. Os coletivos dizem isso quando se formam. Vejamos o exemplo do pessoal da Zé Ninguém: o projeto nasceu em 2013 – a data é simbólica de como ações micro refratam as luzes e as sombras de um momento histórico. Helena Di Lorenza, Walacy Neto e William Trapo se encontraram na poesia e, de lá até aqui, promoveram mais de 100 projetos, entre saraus, slam, feiras literárias, lançamentos de livros e outros. Mais recentemente, o coletivo viajou pelas cidades do interior de Goiás para registrar autores de cada região, no projeto chamado “Vende-se um sarau itinerante”. Olha só que massa esse pessoal fazendo pesquisa também! Admiro muito! Hoje, apenas o Walacy Neto está publicado em livro – por enquanto, espero. Mas eles têm um trabalho forte com zine, demonstrando que a publicação independente e de baixo orçamento mantém compromisso estético. Parece que o zine volta a fazer sentido para o novo poeta. Além do baixo custo de produção, ser efêmero, estabelecer um contato direto com quem lê e também colocar o autor na linha de produção são aspectos convidativos para a colocar a mão na tesoura, no papel, no toner – lembra a geração mimeógrafo mesmo. Como já me disse o Walacy Neto uma vez, atrás de qualquer livro tem o experimento anterior e permanente do fanzine. Então, respondendo mais diretamente a sua pergunta, e sem desprezar o que há de individual e singular no trabalho de cada um, vejo que a resistência hoje está também no gesto poético de descer as escadas da torre de marfim e encontrar pessoas com engajamentos comuns, a formação de coletivos, o trabalho de vários corpos se movimentando juntos, não necessariamente em sincronia, mas em levante. Corpos que se levantam, resistem. 

Para encerrar, Tarsilla, tomo a liberdade de lhe fazer uma provocação: a palavra entrou em crise após o horror propagado nos últimos pelo bolsonarismo no ringue político?

Sua pergunta reelabora a questão adorniana sobre escrever poesia depois de Auschwitz. E a analogia não é exagerada. Afinal, o bolsonarismo é fascista. Ele deseja o extermínio de tudo que não seja espelho. E, sei que dói lembrar, mas é incontornável: em Auschwitz o Nazismo matou pelo menos 900 mil judeus. Aqui, o próprio presidente declarou que a Ditadura instalada pelo golpe militar em 1964 deveria ter matado mais, e ainda, que é preciso “matar a petralhada”. Por fim, é verdade que até mesmo a palavra da imaginação foi sequestrada e deturpada: tudo vira fake news – prefiro dizer mentira mesmo. Os poetas, que durante tanto tempo tiveram orgulho de repetir Fernando Pessoa – “O poeta é um fingidor” –, agora se recolhe à sombra da vergonha da palavra que pode soar enganosa. Mas acho que o movimento deve ser contrário, como diz um amigo querido, poeta também, e olha que ele detesta ser chamado de poeta, ele mesmo anda em crise com a poesia, o Glauco Gonçalves diz assim: sejamos mais mentirosos ainda! Eu acredito nesse caminho da radicalização, na palavra poética e na rua.

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