Nova Capital
Diário da Manhã
Publicado em 2 de dezembro de 2017 às 23:06 | Atualizado há 7 anos
Enquanto Helen pensa sobre o destino errante do ex-marido que está na cadeia – embalada pela fumaça de um prensado paraguaio, à sombra do pé de manga do barracão ocioso nos fundos da casa da Vila Musgo, na região pós-córregos de Nova Capital – o telefone toca. Uma menina de cinco anos atende, já sabendo se tratar do nascimento de seu primeiro primo. Vocalizando alguns sons estridentes e sem nexo visível, ela cumpre a ordem de transferir o aparelho à matriarca do recinto, Joaquina, mulher de grande fé, que se afoga em lágrimas no quarto, com a TV ligada no volume 40, a lidar com a ansiedade carimbada pela emoção de receber de Deus um neto em pleno quinto mês de luto pela morte do marido, Antônio.
O pomposo telefone sem fio, a mais recente prioridade financeira da casa, já está nas mãos da dona, materializado sob os caprichos de suas percepções evangélicas, envolto por eletricidade divina, responsabilizado pelo movimento prescrito de dar um novo norte à vida dela, o arco-íris depois da tempestade. Ela chora enquanto ouve a notícia, lembrando-se não do derrame que matou o marido, mas de todos os irmãos que perdeu, quando criança, para a lei de seleção da roça. No clamor de seus 57 anos, passa na boca um batom, pega a bolsa que ganhou da parente mais rica e grita duas vezes por Helen, já com a chave do Fiat Uno em mãos.
Helen enterra o toco de seu beck entre as britas que lençoam o pé de manga, lança na mente um mantra desconfiado, e antes mesmo que pudesse abrir a porta do eterno corredor que liga o barracão à casa principal, sente o cheiro forte do perfume de sua mãe chorosa. As duas se abraçam, enquanto a menina, levemente esquecida, recolhe do chão um pedaço de Mickey do qual mal se lembra mas ainda se sente dona. Joaquina, tendo a vida de Helen parcialmente nos braços, aperta de leve o nariz em sinal de desaprovação ao hábito de fumar maconha da filha, que no momento sente um misto de vontades. Lembra-se dos papéis do divórcio, e deseja que nunca tivesse casado, imaginando palavras horríveis enquanto pensa em ser a melhor tia do mundo.
Enquanto Joaquina, analogicamente, separa as duas partes tórridas de metal do portão, unidas por um feixo barulhento e enferrujado, Helen dá partida no carro lembrando-se de quando, sob regência do pai, escutou a mágica de fazer funcionar um motor pela primeira vez, através da energia boba que dedicava aos dedos encostados numa chave. O modelo da máquina, o barulho dos tubos, a careca de Antônio, o formato da chave. Helen sentiu-se poderosaeresponsável, maisdoquequando pariu a filha segurando com romance a mão do ex-marido. Tudo isso esfumaçado namentedela, enquantoemprimeiramarcha levemente acelerada, aproxima-se depois distanciando-se do portão e do brilho das lágrimas caídas no rosto da mãe, aquela figura emotiva. Inevitavelmente, nesse momento, todas as três sentem a força gravitacional que impera na garagem sem cobertura, e a impotência de tentarem ignorar a força de uma nascimento pós-morte, numa família pós-Brasília, sem grandes almoços. Nada comparado ao descaso bucólico e corriqueiro do casarão da Vila 11, que apenas tentava perpetuar o farto dinheiro plantado nas terras de Edeia através de lojas de roupa e de uma média de duas crianças por ano.
No carro, uma canção de sertaneja é interrompida pelo dedo de Joaquina no painel do toca-fitas. Helen coça o ombro enquanto espera a abertura do semáforo. A menina, no banco de trás, brinca com uma modestacâmerafotográfica, enquantocanta à capela os versos do refrão interrompido pela avó. Apesar de ter pouco tempo de vida, ela conhece muito bem aquela rua, o cheiro de ração, as roupas de couro expostas nas vitrines ao som dos gritos dos patos presos em gaiolas.
No salão da maternidade, o perfume de Joaquina começa a tomar conta de todo o ambiente. Mesmo sendo adepta ao atraso propositalmente casual, ela espanta-se ao encontrar Celina, com dois ou três netos pendurados em seu vestido florido, batendo um papo com as enfermeiras. As duas se abraçam, enquanto Joaquina percebe que a única porção de ar que resiste ao cheiro territorialista de sua fragrância está representado pelos contornos atmosféricos de Celina, ungida em Derby. Apesar de não aparentar, Joaquina é simpática e humilde, e naquele momento já enfrentava a vigésima pedrada importante da vida. À espera de dar o primeiro banho no primeiro neto macho, que logo mais verá envolto por tecidos, admira a capacidade de Celina de ser fumante mantendo sempre muitas crianças à sua volta, a ponto de não conseguir se lembrar dos nomes, ou de falhar na associação entre crianças e mães, mesmo com sua memória invejável. Numa história que merecesse maior importância, Joaquina seria lembrada por enterrar com sabedoria, além do marido, duas gerações de homens gerados por seu ventre.