Entretenimento

O retorno da glória do Centro da capital

Diário da Manhã

Publicado em 24 de março de 2018 às 21:34 | Atualizado há 4 meses

Que são favas contadas a baixa aprovação do ex­-prefeito Paulo Garcia é fato que não precisa de menção muito detalhada para reavivar a memória do leitor. O prefeito foi um fiasco como gestor público, en­tregou várias obras que não deram certo (como, por exemplo, o Túnel Jaime Câmara, que alaga dia sim dia também, e a revitalização do parque Mutirama, como sabemos, atualmente interditado). Chegou a ser, segundo Ibope e Datafolha em pesquisa de 2016, o prefeito mais mal avaliado entre as capitais brasi­leiras, com desaprovação de 79% do eleitorado. Todavia, há uma atitude em sua gestão que não só foi cora­josa como benéfica sobremodo à população: a devolução da Praça Cívica aos transeuntes. Retirar o in­concebível estacionamento que lá operava e revitalizá-la à moda de sua primeira versão é legado que deve ser respeitado, relembrado e exemplo a ser replicado.

Um “centro da cidade”, na ideia moderna de cidade, deveria ser um espaço de integração social, com acesso facilitado e com es­paços de lazer, cultura e comércio e, não, como atualmente em nos­sa capital, mero local de compras e trabalho, que queda morto todo fim de semana, digno de locação para filmages de cinema pós-apo­calíptico. Observemos, para con­traste, esta bela imagem:

Àqueles que não a reconhecem, trata-se de uma fotografia tirada no Lago das Rosas, em meados da dé­cada de 40. O espaço público não era hostil, ao menos não tanto como atualmente, às pessoas, mas convi­dava-as ao convívio e ao lazer. Hoje, a dita “Rua do Lazer” (oficialmente Rua 8), que nas décadas de 70 e 80 – assim conta meu pai – era um point de barzinhos, música ao vivo e di­vertimento, hoje é espaço para meia dúzia de lojas de óculos e sapatarias. E assim, em diferentes áreas mas com a mesma tônica e intento, fo­ram dilapidando o centro.

Os toldos e banners toscos das lojas de departamento e eletrodo­mésticos ocultaram ou descarac­terizaram a quase totalidade do patrimônio arquitetônico art déco da cidade (aqui vale um parênte­se: importante ressaltar ao leitor não ciente de tal fato, que Goiânia detém um dos maiores, numerica­mente falando, patrimônios arqui­tetônicos art déco do mundo, que não só não recebe atenção míni­ma do poder público, em termos de conservação e zeladoria, como, por ignorância histórica, não rece­be igualmente o mínimo de zelo e apreço de grande parte dos ci­dadãos goianienses – ao ponto de muitos proprietários deliberada­mente deixarem prédios históri­cos apodrecer para que se facilite a venda do terreno à construção de alguma aberração qualquer, prova­velmente de mau gosto).

Não se trata aqui de uma de­claração de guerra ao comércio e suas estratégias de visibilidade e propaganda, mas se pegarmos exemplos simples, como Curiti­ba, Paraty e a própria Cidade de Goiás, temos aí uma gama de ca­sos que mostram ser possível não desacelerar a economia, e seu res­pectivo merchandising, conjuga­da a um cuidado com a preser­vação da estética e da história da cidade. Uma regulação mais cui­dadosa das fachadas das lojas, composta em harmonia com o estilo arquitetônico do prédio… e temos assim, sem mágica e com pouca dificuldade, uma cida­de linda, agradável, a reluzir aos olhos de seus habitantes, revelan­do suas belezas, e neles inspirar orgulho e pertencimento.

É no mínimo vergonhoso que espaços tão potencialmente pujan­tes e de passado memorável como o Cinema Goiânia Ouro ou o Mu­seu Zoroastro Artiaga não recebam maior visibilidade e participação no circuito nacional de exposição de peças, filmes e obras de arte em geral, ficando legados a meia dúzia de cidadãos que sabem que estes existem e, muito ocasionalmente, conseguem ali desfrutar de algu­ma curadoria interessante quando ela raramente ocorre. Nesse senti­do, o Cine Cultura (que opera com apenas uma sala de projeção e se­quer aceita cartões bancários) ain­da consegue ser objeto de admira­ção, reproduzindo cinema de boa qualidade com certa regularidade de horário, resistindo bravamente, ainda que com poucos recursos, apesar de ser ainda um cinema de público muito específico.

Igualmente razão do enrubes­cer das maçãs do rosto é ver que prédios como a Antiga Estação Ferroviária ainda estejam abri­gando apenas insetos e traças e que construções como esta cita­da, ora não sendo mais uma es­tação ferroviária em uso, não se­jam reaproveitadas para abrigar mostras culturais e artísticas (a despeito da recém-aprovada or­dem de restauração do edifício, pouco ou nada tem-se dito so­bre o que dele fazer, para ser efe­tivamente presente na vida do cidadão goianiense). Na Europa, depois da decrescente religiosa, várias igrejas foram reaprovei­tadas como bibliotecas ou espa­ços para apresentações artísticas, uma tão bela estação ferroviária não precisa de muito para aten­der a estes mesmos fins.

O centro tem de ser devolvi­do ao convívio e uso dos morado­res de Goiânia. Aos sábados e do­mingos, quando todo o comércio fecha, dá tristeza caminhar pelas principais avenidas da cidade e perceber que, fora para comprar eletrodomésticos e vestimentas, o cidadão goianiense não vê razão para frequentar esta região da ci­dade. Tanto potencial latente, tan­to descaso público e desinteresse histórico. Poder frequentar o Mer­cado Central, depois ir a um es­petáculo no Teatro Goiânia, ou­vir música independente nalgum evento cultural no Grande Hotel, fechar a tarde com uma cerveja gelada no beco da rua três ou no mercado da 74… deveriam estas possibilidades estar disponíveis de imediato no leque mental de op­ções do cidadão em geral na cida­de de Goiânia, em oposição à ló­gica corrente, na qual para grande parte da população a única opção vislumbrável é ir a um dos vários e tediosos shoppings da cidade.

Certa vez, por conta de um com­promisso acadêmico, tive oportu­nidade de conhecer o centro his­tórico de São Luís do Maranhão. Dá pena ver como um centro his­tórico tão belo e de tanta história foi de tal maneira vítima do desca­so que não só deterioraram-se os prédios, como o lugar é conside­rado pela própria população zona pouco segura. O mesmo acontecer em Goiânia, como parece ser a ten­dência para os próximos anos (se já não for) é de angustiar ao ponto da fatiga. Este é outro aspecto im­portante, para além de qualquer argumento “progressista” ou “cul­turalista” em terno da questão da revitalização e devolução do cen­tro da cidade à população, esta é também uma questão de seguran­ça pública. Ampliar a visibilidade do centro, fomentar a circulação de pessoas, dinamizar os eventos ali ocorrentes é forma já empiri­camente comprovada – e relativa­mente barata e com ganhos em vá­rias frentes – de reduzir o índice de criminalidade no local.

Outro aspecto enfadonho é que, precisamente nos dias em que a po­pulação pode, em maior número, deslocar-se para lazer, os ônibus da cidade passem em bem menor fluxo (em particular na periferia da cidade), algumas linhas inclusive sequer operando (!) aos finais de semana. Trabalhadores, aparente­mente, só podem se deslocar para trabalhar, lazer não é para eles.

Em uma conversa informal um pesquisador a mim próximo disse que se chegou a discutir com os pro­prietários de lojas do centro a revi­talização das fachadas dos prédios históricos e eventual regulamenta­ção para a instalação de novos letrei­ros e banners (em harmonia com as fachadas), ao que os proprietá­rios responderam estar dispostos, desde que o poder público arcasse com todas as despesas disso decor­rentes. Sabemos nós – e sabiam eles – que a prefeitura jamais teria condi­ções de dispor de tal verba para esta finalidade, demonstração notável da falta de senso cívico por parte dos donos de lojas da região e comple­to desinteresse em melhorar e tor­nar mais agradável um espeço em que eles mesmos vivem e operam. Promover tais reformas seria não só demonstração de espírito público e cívico, como belo gesto em prol da valorização do nosso patrimônio e história, além de incidir diretamen­te na dinamização da cidade, o que, como se sabe em qualquer lugar ci­vilizado do planeta, é aumento certo de consumo. Parece que a mentali­dade provinciana de nossos capi­talistas obscurece até a capacidade destes de agir em prol de si mesmos.

O curto-prazismo e a maximi­zação dos lucros a todo custo pre­sente na mentalidade de rentistas proprietários de imóveis e lojas na região não pode intimidar-nos e nem pode ter a condescendência do poder público. Urge a prefeitura e o governo do estado terem com­petência e celeridade para devol­ver o centro à população da cida­de. Medidas como a restauração e devolução da Praça Cívica à popu­lação devem não só ser mantidas e preservadas, mas ampliadas. O centro não pertence a vocês pro­prietários de imóveis e lojas, o cen­tro é de todos nós.

(Ian Caetano, graduado em Ciências Sociais pela UFG, mestre em Sociologia Política pelo Institu­to de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e douto­rando na mesma instituição.)


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