Obituário brasileiro
Diário da Manhã
Publicado em 7 de setembro de 2018 às 23:37 | Atualizado há 7 anos
Durante 45 anos, a bióloga e ativista Bertha Lutz se dedicou a coletar e documentar uma série de papéis que retratam a memória da luta feminista nos bastidores dos palácios, no parlamento e no combate corpo-a-corpo para construírem leis e políticas para as mulheres ao longo da primeira metade do século XX.
Onde essa preciosidade está agora? Sob os escombros do Museu Nacional em São Cristóvão. Enterrado junto à identidade de inúmeras mulheres cremadas pela negligência política e popular. O brasileiro não deixa de ir ao Louvre, mas no Rio de Janeiro só lembra do bondinho e da caipirinha do posto 12. Longe de mim mudar o curso da culpa para desembocá-la no povo. O estômago do mais insensível dos homens também deve — deveria — ficar nauseado ante a evidência de que o governo gasta três vezes mais para lavar sua frota automobilística do que com museus. Mas já que essa fossa foi destampada, e o impacto desse cheiro magoou o mundo, o melhor mesmo é assumir que esse cheiro também vem do nosso próprio banheiro e investigar a origem dessa infecção estomacal generalizada. Vamos lá.
Não é novidade que a cultura nunca foi a nossa prioridade nacional. Também seria estranho se fosse: a derrocada de um conhecimento milenar frente as mil maracutaias e denúncias que pipocam no noticiário cotidianamente. Isso é pra pirar a cuca do mais intelectual entre os homens. Sobreviver é preciso. O saber, hoje, nem tanto.
Sob essa perspectiva também podemos traçar o perfil brasileiro tragicômico que não se esgota. O que Nelson Rodrigues tão bem analisou sob a ótica psicanalítica do Complexo de Vira-Lata. O mais comum e ignorante brasileiro não deixa de ir ao Louvre por amor à arte, mas porque o francês hasteia com pompa e circunstância o orgulho de sua própria história.
A valorização cultural é o reflexo da autoestima de um povo. O brasileiro é um ex-namorado que cobra fidelidade sem amor-próprio. E então seguimos de cabeça baixa, nos sentimos pobres, nos comportamos como pedintes do subdesenvolvimento, acreditamos que a nossa história só começou após o assentamento do pé português, reduzimos nossa bandeira a objeto de grupos políticos, temos vergonha do que somos e brigamos feito gatos como uma grande e atrapalhada família Buscapé. Eis tudo. O brasileiro tão famoso pela sua alegria fugaz, o molejo do quadril, o bronzeado da laje, é profundamente depressivo. E vivemos de placebos.
Como Nero, ateamos fogo na Roma tupiniquim e saímos saltitantes tocando pandeiro. O recente e moderno cinismo nacional, que ri ante a própria tragédia, não é capaz de tapar por completo o buraco onde mora a nossa baixíssima autoestima. Ela está lá, no pó da estrutura de um anjo caído, onde a princesa Isabel corria leviana pelos jardins imperiais, incapaz de prever a cortina de fumaça que cega a nação de ignorância, fere o orgulho dos cariocas. O samba sempre foi mesmo mais triste do que alegre.
Não pretendo bancar a museologista ou a secretária de cultura do meu próprio ego. Tampouco tenho a intenção de extraviar a responsabilidade do Estado, que para mim, é mais do que óbvia, é vergonhosa. É que dói a impossibilidade. Tudo aquilo que perdemos e não pode ser recuperado. A imagem inesperadamente bela e comovente de pesquisadores apaixonados se atiçando ao fogo para salvar o trabalho de uma vida. De milhares de vidas.
Tudo vira pó, inevitavelmente. Pedra sobre pedra, tudo será destruído! Como Borges, no escuro, também sonho com a biblioteca de Alexandria, aguardo ansiosa pela alçada do corpo de Nefertiti. No entanto, é preciso exigir deste obituário o atestado correto desta morte violenta, que veio prematura demais e privou o mundo de um conhecimento insubstituível. Sem meias palavras, estamos falando de um assassinato cultural. Um verdadeiro homicídio em massa.
Quando o Brasil irá se deitar no divã das margens plácidas e reconhecer a própria deficiência? Sem esquecer é claro da culpa dos pais, sempre dos pais. A verdade é que o caos político já instalado — e o futuro que se anuncia sombrio — não passa do reflexo da nossa teimosia. Que ergue santos. Elege super-heróis, desde o barbado metalúrgico ao aspirante militar. Deposita a esperança em piadistas ególatras, que não andam de metrô e têm preguiça de museus. Nem um erudito de um FHC é possível salvar dessa história. O que se sabe é que Juscelino foi o último a andar sobre o agora túmulo de São Cristóvão.
Sem mais chatices moralistas e delongas literárias, acredito sobretudo na importância do levantamento qualitativo das perdas. É só isso. Reconhecer o que perdemos é o princípio para valorizarmos a riqueza de nosso passado. O legado de Bertha Lutz está perdido para sempre. Não saberemos o nome dessas mulheres, não conheceremos suas histórias. Isso é grave e deve ser cobrado junto às outras dívidas monstruosas que o Brasil empenha em santos de pau oco.
Até a primeira sessão de análise juramos conhecer todos os nossos traumas, defeitos, qualidades. E se surpresos descobríssemos que uma das curas para a nossa doença está enterrada agora, sob cinzas e lamentos de um museu esquecido no centro fluminense? O fato é que o fogo doeu mesmo. Muito. Em muitos. Essas queimaduras não irão se curar rapidamente e deixarão sequelas gravíssimas. A cultura importa. É aí que está escondida a autoestima brasileira, que pode ser recuperada através do luto. Um minuto de silêncio para este velório interminável.