Os contrastes da arte
Diário da Manhã
Publicado em 21 de novembro de 2017 às 04:15 | Atualizado há 4 meses
Você já parou para imaginar como seria o ateliê de grandes nomes das artes, a exemplo de Claude Monet e Auguste Renoir? O artista plástico Luiz Mauro não só pensou nisso, como dedicou anos a fio para, a partir das fotos destes espaços, mostrar o seu olhar a cada um destes lugares de criação. O resultado do intenso mergulho à história e subjetividade da arte vai poder ser conferido na exposição “Na Escuridão do Ateliê Nasce a Luz”, que abre hoje, às 19h, no Centro Cultural UFG. O evento marca ainda a volta do artista às exposições individuais, o que não fazia há 13 anos.
Com curadoria de Divino Sobral, a compilação traz 18 trabalhos, que contemplam, além de Renoir e Monet, os ateliês de outros nomes internacionais da arte, como Anish Kapoor, Ad Reinhardt, Roy Lichtenstein, Benjamin Johnston e Georgia O’Keeffe. Há também representantes brasileiros, a exemplo de Rubem Valentim e Lygia Clark. As obras fazem parte de uma série “Ateliê”, que foi apresentada em 2015 no Maison Européenne de la Photographie (MEP), em Paris, um dos principais espaços dedicados às fotografias na Europa.
Na França, a exposição chegou sob o título “Des Peintures Comme des Photographies” e, conforme Luiz Mauro, foi bem recebida por público e crítica. “Muita gente ficou surpresa por encontrar pinturas em um espaço tradicionalmente dedicado à fotografia, o que fez com que os curadores de museus, críticos de arte de diversos veículos de comunicação e galeristas demonstrassem grande interesse pelo meu trabalho. As exposições foram abertas numa terça-feira à noite e na quinta-feira à tarde já haviam mais de 1.400 assinaturas de visitantes”, relembrou o artista.
“Na Escuridão do Ateliê Nasce a Luz”, apesar de compartilhar a mesma essência – e alguns trabalhos – da exposição parisiense, também apresenta obras inéditas. Até porque, muitos trabalhos daquela época foram vendidos – e por tal motivo nem foi possível dar continuidade a uma exposição agendada logo em seguida no Rio de Janeiro.
TÉCNICA
Além de impressionar o velho mundo, pode-se dizer que a série “Ateliê” revolucionou a forma de Luiz Mauro fazer arte. Pois, apesar de sempre ter mantido uma relação de proximidade e respeito com a história da arte e espaços arquitetônicos, trabalhar com a fotografia é um processo relativamente novo para o artista. Afinal, Luiz Mauro, que começou a pintar na década 1980, durante maior parte da carreira trabalhou somente com pintura sobre tela. “Papel para mim servia apenas como estudos para chegar à obra final”, revela.
Agora, tudo mudou: tendo o papel como suporte, ele acrescenta à imagem várias camadas de nanquim e tinta a óleo. Uma das principais abordagens deste novo processo é a transposição de imagens documentais para o universo da pintura e do desenho. E o resultado é um jogo interessante entre luz e sombras, em que é revelada não só o espaço físico, mas a carga emocional e dramática guardada cada ateliê.
“Esses trabalhos surgem por meio da fotografia, mas a poética só aparece quando subjetivo essas imagens, quando tomo esses espaços para mim, porque na realidade eu não tento retratar esses espaços, o que faço é tomá-los para mim, como se eu quisesse preservar esses ambientes na minha memória”, explica o artista.
E esta capacidade de criar em cima de algo tão concreto, para Divino Sobral, transforma o trabalho de Luiz Mauro em algo “nada fotográfico”. “O objetivo de Luiz Mauro não é reproduzir literalmente a fotografia, e sim utilizá-la como matriz para a construção de uma obra que parte do registro documental para atingir o estado poético repleto de melancolia, e que exibe em si mesma seu modo de fatura cambiante entre desenho e pintura e sua existência autônoma da fotografia”, disse o curador.
Antes de passar por toda técnica que possibilita estas imagens impressionantes, o artista realiza todo um trabalho de pesquisa, em livros, revistas, na internet, conversas, etc. Seu processo criativo é repleto de sutilezas e detalhes interessantes que o artista contou detalhadamente em entrevista ao DMRevista. Acompanhe trechos da conversa a seguir:
Evento: Mostra Na Escuridão do Ateliê Nasce a Luz
Centro Cultural UFG (Av. Universitária, 1533 – Setor Leste Universitário)
Abertura: Hoje, às 19h
Período de visitação: Até o dia 26 de janeiro de 2018, das 9h às 12h e das 13h às 18h (segunda-feira a sexta-feira)
ENTREVISTA – LUIZ MAURO
DMRevista- Foi a imagem do ateliê de Georg Baselitz que te inspirou a criar a série “Ateliê”?
Luiz Mauro- Sempre me interessei por espaços arquitetônicos, por interiores, e também pela história da arte. Quando vi aquela imagem senti que se recriasse aquele ambiente no desenho eu iria unir estes dois elementos. Mas isso foi em 1997, eu tinha compromissos relacionados com outros trabalhos que eu estava desenvolvendo naquele momento e eu me esqueci desse desejo. No final de 2004 eu me casei e me mudei para Goiânia e passei a pintar em um quarto pequeno, bem diferente do grande espaço que eu ocupava na cidade de Inhumas. Aí, acho que pelo contraste e pela nostalgia daquele grande espaço perdido, comecei a criar ateliês imaginários a partir dos ateliês que já tinha tido. Em 2011 eu ganhei um prêmio no Salão de Arte Contemporânea de Goiás, organizado pelo saudoso Carlos Sena, com um desses trabalhos, intitulado “Estúdio nº 5”. Logo em seguida, me caiu às mãos uma fotografia do ateliê de Claude Monet, foi quando decidi retomar aquela ideia que eu tinha tido ainda na década de 90. Mas o ateliê de esculturas de Georg Baselitz só seria realizado por mim em 2014, porque eu tinha perdido essa imagem em alguma caixa durante as mudanças e somente quando fui reabrindo caixas, já tinha feito muitos ateliês, aquela imagem me retorna.
DMRevista- Ateliê de algum artista em especial te chama mais atenção?
Luiz Mauro- Eu analiso esse trabalho de duas maneiras, uma é cada ateliê individualmente, aí sempre acho que o trabalho mais interessante é o que eu ainda vou realizar. Mas tive uma experiência muito intensa com o Ateliê Rubem Valentim, que é o último que realizei, e eu procurava pela imagem há três anos, na internet, livros, revistas, perguntava pra pessoas que tiveram contato com ele em vida, e não encontrava. Até que soube que o artista, ativista e xamã Bené Fonteles tinha sido grande amigo e assistente do Rubem. A relação deles foi tão próxima que o Rubem deixou toda a mobília e pertences do ateliê em testamento para o Bené, que até já remontou esse ateliê no Museu da República. Fui atrás do Bené, o conheci e demonstrei o meu desejo de fazer o trabalho sobre o espaço de criação do Rubem e ele me disse que tinha sido feito um registro antes da desmontagem do ateliê, mas que elas estavam perdidas. Demorou alguns meses até que as imagens fossem encontradas. Esse trabalho está presente na exposição.
DMRevista- Em que estes ambientes mais te fascina?
Luiz Mauro- A primeira coisa que me move é a história de cada artista que habitou esse ateliês, mas o que me motiva mesmo é a força de cada um desses espaços. Sempre me senti atraído pelo ambiente do ateliê, creio que pelos mistérios que giram em torno desse lugar e pela intimidade que caracteriza esses espaços. Minha formação, enquanto artista autodidata, se deu principalmente nesses espaços, em ateliês de diversos artistas, assim como no ateliê coletivo que tínhamos em Inhumas. No convívio diário nesses espaços sempre tive na minha imaginação que faria algo sobre o tema, mas não sabia exatamente o que seria, isso só foi acontecer com o passar do tempo. E sabia do risco que eu estava correndo, porque era um tema que estava presente na história da arte de uma forma muito acadêmica e não era isso que eu queria. E ao mesmo tempo sabia que o trabalho ia ter que dialogar com a tradição, então é uma obra muito elaborada e que me expõe a riscos.
DMRevista- Como nasceu este convite de expor fora do Brasil?
Luiz Mauro- Jean-Luc Monterosso, diretor da Maison Européenne de la Photographie (MEP), tem grande interesse pela produção brasileira, já tendo organizado exposições de diversos artistas, como Vik Muniz, Miguel Rio Branco e Sebastião Salgado. Em julho de 2014 Monterosso veio ao Brasil para organizar uma exposição coletiva de artistas brasileiros (exposição que só aconteceu agora em 2017) e na sua pesquisa, visitando o colecionador Leonel Kaz no Rio de Janeiro, ele se deparou com alguns trabalhos meus. Conforme foi narrado por ambos, quando Monterosso viu os trabalhos ficou muito bem impressionado e falou: “Vamos parar tudo, quero ver é isso aí.” Depois, perguntou ao Leonel se ele tinha outras obras, eles foram ver e então ele propôs a individual em Paris. O que o levou a se interessar foi o diálogo que meu trabalho estabelece com a fotografia, o fato de eu partir de fotos documentais trazendo-as para o campo da pintura. Foi assim que em abril de 2015 inaugurei a mostra Des peintures comme des photographies, simultânea a cinco mostras de artistas que trabalham com fotografia, sendo três franceses, uma japonesa e um inglês. A MEP é o maior museu de fotografia da Europa.
DMRevista- Por que o hiato de 13 anos sem expor em Goiânia?
Luiz Mauro- Na realidade, da última individual em 2004 para agora, meu trabalho passou por uma grande transformação, até meu ateliê teve que ser adequado a esse trabalho que estou realizando hoje. Por diversos anos eu trabalhei somente com pintura sobre tela, papel para mim servia apenas como estudos para chegar à obra final. Mas antes dessa exposição acontecer na MEP, era pra ela ter acontecido no Rio de Janeiro, na Atena Contemporânea, com a mostra na MEP, nós a adiamos para que fosse feita logo depois. Mas com a exposição na MEP, alguns trabalhos foram vendidos e não foi possível. Entretanto, nesse período eu participei de várias mostras coletivas e durante algum tempo não senti vontade de realizar uma exposição individual. E de 2004 para cá meu trabalho passou por uma grande transformação e isso levou tempo para que eu considerasse que já havia um conjunto que fechasse o conceito do meu trabalho. Além disso, meu processo é muito lento, tenho uma relação muito particular com o tempo. Cada trabalho dessa série de obras, seja em maior ou menor dimensão, exige muito tempo para ser elaborado. Para você ter uma ideia, alguns desses trabalhos levam até quatro meses para serem feitos. Primeiro há a escolha da imagem, porque se não for uma boa imagem, não dá pra fazer o trabalho. Em seguida, eu preciso adequar essa imagem, ampliá-la por meio de cópia para um maior detalhamento; então, antes de o desenho chegar à mesa do ateliê, já foram alguns dias em pesquisa e adequação dessas imagens para interpretação; depois vem a parte do desenho, da perspectiva, aí as sucessivas camadas de nanquim, até chegar à finalização com o óleo.
DMRevista- O jogo de sombra e luz é uma das características da sua obra. Pode falar um pouco como foi a construção do seu estilo?
Luiz Mauro- Esse interesse pela luz pode ser percebido em trabalhos que realizei em 1988, mas nessa série atual a obra é desenvolvida na luz que nasce da escuridão, o espaço e os objetos nascem através dessas zonas de contraste entre a luz e a escuridão. O título da exposição dado pelo curador Divino Sobral foi muito inteligente porque faz uma síntese do meu processo de trabalho.
DMRevista- Você tem mais de 30 anos de carreira, como é que o tempo tem agido em sua maneira de criar?
Luiz Mauro- O tempo tem agido através das transformações que o dia a dia estabelece conosco. Mas o fio condutor da minha obra está presente nas primeiras obras, desde a segunda metade da década de 80, como assuntos e abordagens, o tempo também potencializa também os pontos de interesse, a história da arte e da humanidade sempre me fascinaram e me moveram. Eu falo da história da arte, mas o principal mesmo é a história da humanidade.
DMRevista- Muitas polêmicas rondaram a arte nos últimos meses. Como você tem encarado o atual cenário da arte contemporânea no Brasil?
Luiz Mauro- Já foram feitos vários estragos devido ao posicionamento desses grupos conservadores e radicais, fundamentalistas. Temos que lutar a favor da liberdade, conquistada por meio da luta de várias gerações. Mas acredito que serão necessários anos para retomarmos conquistas que imaginávamos que fossem sólidas. E o verdadeiro sentido dessas ações é silenciar o artista, porque temos voz diante do povo. Quanto à arte contemporânea brasileira, ao mesmo tempo que existe uma crise e uma massificação, nós temos artistas fundamentais para a compreensão da arte contemporânea no mundo.
DMRevista- Qual o seu maior sonho enquanto artista?
Luiz Mauro- Sou um tipo de artista que tem a atividade no ateliê como ofício. Trabalho todos os dias. Para mim o mais importante é continuar produzindo, meu maior luxo é fazer arte.
“Temos que lutar a favor da liberdade, conquistada por meio da luta de várias gerações”, disse o artista