Pão, um alimento que alimenta a alma
Diário da Manhã
Publicado em 15 de agosto de 2018 às 23:47 | Atualizado há 4 meses
Com certeza o pão e o vinho fazem parte da história da humanidade e possuem grande simbologia. Alimento de suma importância em diversos países, o pão pode ser a entrada e também o término de uma refeição. O pão e o vinho são alimento, comida, sustento. O pão, feito por muitos grãos de trigo, e o vinho feito de bagos. Os dois passam um sentido de união.
O segredo do pão é ser muito complacente e artista. Sou boa em várias coisas que parecem difíceis, mas não são – molho béarnaise, filé au poivre – em harmonizar pratos difíceis com vinho. Mas não sei fazer um vinagrete decente; qualquer coisa que inclua uma “crosta de sal” me deixa insegura; e, até bem recentemente, eu nunca fizera pão.
CADERNO DE RECEITAS
Algumas semanas atrás, porém, encontrei um caderno de receitas da minha mãe, escrita à mão e emoldurada, uma receita chamada “Pão da Edinha” e uma foto minha quando era pequena me deliciando com o pão e colado na página da receita. Era grande, com cara da década de 1980, com instruções e ingredientes como painço, aveia e mel cercados por uma borda de folhas, pétalas e abóboras.
– Pão da Edinha?, gritei. Ela sem saber o que estava dizendo, pois hoje se encontra com Alzheimer, me olhou fixa em meus olhos e me disse, minha filha, você adorava este pão. Como se suas lembranças por um flash se estabelecessem em sua memória. Comecei a chorar e sorrir tudo junto e misturado. Aquela senhora, linda, já utilizou de seus conhecimentos gastronômicos para me dizer que me amava transformando trigo em pão para me encantar com suas delícias.
– Quando era adolescente – disse ela –, minha família era pobre e minha minha mãe me ensinava a costurar as minhas roupas e também a cozinhar, o que eu mais adorava fazer, era o meu próprio pão. Foi assim que seu pai se encantou comigo. Era bonita e prendada…
Tenho lembranças de vê-la na cozinha fazendo pão. Tampouco costurava suas colchas de retalhos que adorava. Minha mãe se vestia lindamente com seus vestidos bem cortados que ela comprava em São Paulo, pois na época, por volta 1980, tinha uma loja de roupas. Em seu guarda-roupa era escondido um vestido Kenzo que ela guardava com muito cuidado e não emprestava para ninguém. Usava sapatos de salto alto que meu pai amava. E aí, quando entrava na cozinha com sua peculiar elegância, encantava a todos da famíla. Contava histórias de quando via minha avó no seu fogão a lenha em sua humilde pensão na pequena cidade de Canápolis – Minas Gerais. Ela, enquanto amassava o pão, ia me descrevendo a sua infância. Minha mãe dizia que era acordada com minha avó tocando sanfona e cantando “Quem quer pão, quem quer pão? ” E ela me dizia que sempre sentia os aromas daquele pão de mel no forno a lenha.
PREPARAÇÃO DO PRIMEIRO PÃO
No dia seguinte, me perguntei:
– Então por que você não faz seu pão?
– Não é tão fácil assim – me respondi. A receita dizia que precisava de uma vasilha de cerâmica grande. E uma tábua de pão de madeira. Onde vou achar? De repente me peguei com muitas lembranças daquela época. Me lembro que meu pai e eu passávamos um tempo na cozinha tomando uma cervejinha gelada, conversando, fazendo companhia para ela e vendo o pão crescer, depois ela assava e comíamos com manteiga e mel.
A imagem dela de avental, cercada pelas lembranças claras e aconchegantes da década de 1980, era tão inebriante que resolvi fazer um pão no dia seguinte. Escolhi a receita de “Pão sem sova”, que recortara de uma revista. Corri até o supermercado, comprei fermento e segui as instruções de misturá-lo com água, sal e farinha. Deixei a massa crescer durante a noite e, pela manhã, pus no forno a 230 graus.
Uma hora depois, lá estava ele. Era pão! Não era um pão bom; aliás, ruim, difícil de comer, não tinha muitas daquelas lindas bolhas e o sabor era meio amargo. Mas era pão, e não posso explicar como foi incrível e agradável.
Em uma semana, lá estava eu de novo na minha cozinha sem muitos equipamentos e uma bancada ruim. Mas nada que pudesse resolver, e saí atrás de uma bancada móvel de rodinhas e que tivesse freio. Comprei um forno e lá fui eu me aventurar na arte de fazer pão. Logo fui estudar sobre os pães e entendi que o fermento é apenas um monte de bichinhos juntos – organismos eucarióticos do reino dos fungos, parentes dos cogumelos. “Quando misturamos esses bichinhos com um carboidrato, eles começam a consumir todo o oxigênio e a liberar um gás feito de álcool etílico e dióxido de carbono”. É com o álcool por eles produzido que se fazem as bebidas. É o dióxido de carbono que forma o pão. O gás produzido faz a massa crescer. É ele o criador do pão.
Enquanto eu misturava e sovava, os sons reconfortantes de minha infância retornaram: o zumbido constante da batedeira elétrica da minha mãe, o batedor para massas zunindo ao girar. “Quanto mais tempo os bichinhos levam para consumir o oxigênio, mais gostoso fica o pão”, ela me dizia. “O calor forte do forno mata o restante dos bichinhos, mas preserva seu trabalho. Todas as bolhas de dióxido de carbono se fixam com os lindos furos esponjosos do miolo do pão”, segundo ela.
Prossegui para o pain Poilâne (pão da França), cujo fermento eu preparei; e ele foi se desenvolvendo sob um plástico na pia. Misturei água e farinha de trigo, deixei a mistura exposta ao ar e esperei que os fermentos naturais pousassem na mistura e começassem a consumir os carboidratos.
Passei dois dias misturando água e fermento com farinhas diferentes, e depois esperei tempos variados. Fiz o pain Poilâne, escuro, de casca crocante e que requer um longo período de descanso. Fiquei encantada com a plasticidade da massa: primeiro mergulhando as mãos, puxando, resistindo, estranhamente viva, como se tivesse inteligência própria, a inteligência coletiva de todos aqueles bichinhos. A massa de pão se mantém inerte; ela respira, cresce, reflete sobre a vida.
Depois, há os aromas. O cheiro lento de “amor”, que se evola do pão que cresce, e o cheiro que traz tantas lembranças, que se intensifica conforme ele assa no forno. O mais profundo prazer sensual do pão surge na hora de cortar, quando afundamos a faca na textura macia e que de repente ganhou estrutura e corpo.
GRATIDÃO
Percebi que nunca, nem uma vez, agradeci todo aquele pão. No caminho para casa refleti que aqueles “muito obrigado” que dizemos aos pais nunca são suficientes, e às vezes nos sentimos constrangidos de agradecer mais. Imaginamos que nossa existência já tenhamos agradecido o suficiente. Mas não.
Quando somos jovens, pensamos que tudo é obrigação dos pais e não agradecemos. Depois de alguns anos, me emociono lembrando daquela linda cena da minha mãe, alta, linda e vibrante, com seu lindo avental preto, seu cabelo arrumado, dançando suas mãos na massa do pão. Ela fazia aquele pão com maestria; na verdade, logo pela manhã, levava o pão quentinho no meu quarto e colocava-o sobre o meu nariz para que sentisse os aromas. Acordava de imediato para poder tomar o café da manhã e comer seu delicioso pão e ia para a escola feliz. Hoje, não sobreviveria sem essas lembranças.
Com este saudosismo, enfim, estava pronta para fazer o meu pão. Encontrei o tipo certo de vasilha de cerâmica e o tipo certo de tábua de madeira. Achei um avental preto no meu guarda-roupa. Liguei minha pick-up. Misturei todos os ingredientes naturais – a farinha integral e o painço (cereal nutritivo) – e depois cobri a vasilha de cerâmica com um pedaço de linho branco.
Uma vez crescida a massa, abri um vinho Bordeaux para assistir. O jeito de eu sovar a massa me espantou: sovava com fervor doméstico e feliz. Em seguida, comecei a trançar com habilidade três longos rolos de massa. Depois de assado, o pão ficou lindo, passei manteiga numa fatia e provei com o vinho tinto. Foi uma sensação maravilhosa, ali na minha cozinha, sozinha, me deliciei com o “Pão da Edinha”.
Comoharmonizarpãocomvinho?
Os sabores do pão e do vinho devem ser complementares e não podem se sobrepor. Os espumantes feitos com a uva Chardonnay são ótimos para harmonizar com pães de aveia. Já os Pinot Noir são melhores combinados com pães mais “massudos”, tipo italiano.
Os vinhos tintos são perfeitos para harmonizar com pães gourmet, que apresentam uma junção inusitada de ingredientes. As melhores combinações acontecem quando o pão e o vinho têm suas virtudes mutualmente ressaltadas. Isso acontece por conta do equilíbrio das estruturas e pelo contraste das sensações que proporcionam o prazer gustativo.
Receita da semana
Se aventure e faça um delicioso pão e harmonize com vinho branco Chardonnay Aurora
PÃO DO AMOR
INGREDIENTES
3 ½ xícaras (chá) de farinha de trigo
1 ⅓ de xícara (chá) de água
1 colher (sopa) de fermento biológico seco (cerca de 10 g)
2 colheres (chá) de sal
farinha de trigo para polvilhar a bancada
azeite para untar a tigela
água para borrifar os pães
MODO DE PREPARO
- Numa tigela grande, misture a farinha com o sal e o fermento. Acrescente a água aos poucos, misturando com uma espátula para incorporar. Deixe repousar em temperatura ambiente por 10 minutos – assim a farinha absorve melhor a água.
- Após os 10 minutos de repouso, com a espátula, revire e dobre a massa sobre ela mesma, até que esteja numa consistência mais fácil para manusear. Transfira a massa para a bancada e sove por cerca de 15 minutos – dobre, amasse, estique e amasse novamente até ficar bem lisa, macia e úmida. Se preferir, pode sovar a massa na batedeira com o gancho em velocidade baixa.
- Unte uma tigela grande com azeite. Modele a massa de pão numa bola e transfira para a tigela untada. Cubra com um pano de prato (ou filme) e deixe em temperatura ambiente para crescer por cerca de 1 hora ou até dobrar de volume.
- Assim que a massa tiver crescido, polvilhe um pouco de farinha de trigo sobre a bancada e sove novamente a massa por mais 5 minutos. Modele novamente uma bola, cubra com o pano de prato e deixe a massa descansar por mais 10 minutos. Enquanto isso, separe uma assadeira grande e polvilhe com farinha de trigo.
- Sobre a bancada, corte a massa ao meio com uma espátula (ou faca) e modele dois pães redondos. Transfira os pães para a assadeira com a emenda da massa para baixo, cubra com o pano de prato e deixe descansar por mais 30 minutos.
- Enquanto isso, preaqueça o forno a 220°C (temperatura alta) – assim o forno vai atingir a temperatura certa no momento em que o pão estiver crescido.
- Após os 30 minutos, com a ponta de uma faca afiada (ou estilete), faça 3 cortes paralelos na superfície de cada pão. Borrife com água e leve ao forno. Deixe assar por cerca de 30 minutos até ficarem com a casca bem dourada.
- Assim que estiverem assados, retire a assadeira do forno e, com cuidado, transfira os pães para uma grelha. Deixe esfriar antes de cortar.
CAÇAROLAS DA SEMANA E VINHOS
POBRE JUAN
Fui recentemente ao restaurante à espera de uma deliciosa carne à la Argentina. O atendimento é excelente, o couvert nem tanto. Provei uma cerveja argentina que estava bem gelada e tinha bom custo-benefício. A decepção veio no prato principal, meu pedido era uma carne mal-passada e que chegou à mesa crua e gelada. Pedi ao maître que retornasse com meu prato. Na segunda vez, veio uma carne totalmente passada e que tinha saído do ponto. Por fora, estava puro carvão, sem atrativo, e com um arroz biro-biro feio e sem sabor, as verduras assadas também não estavam lá essas coisas. De sobremesa, pedi churros com doce de leite argentino, ambos estavam bem saborosos. É um restaurante onde voltaria para um fim de tarde, mas não sei se volto para o almoço ou jantar.
DE OLHO NAS TAÇAS
Durante oito dias, as 351 amostras inscritaspor50vinícolasdeseisestados brasileiros (Bahia, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina eSãoPaulo) serãodegustadasàscegas por120enólogos. Otrabalhocomeçou hojeesegueaté23deagosto, noLaboratóriodeAnáliseSensorialdaEmbrapa Uva e Vinho, em Bento Gonçalves.
Serão 24 horas de degustação às cegas. Para que todas as amostras sejam degustadas nestes oito dias, exceto sábado e domingo, os enólogos foram divididos em oito grupos com 15 profissionais cada. A cada dois dias, dois grupos de enólogos entram em ação. Para o presidente da Associação BrasileiradeEnologia(ABE)– promotorado evento –, enólogoEdegarScortegagna, esta é a etapa mais criteriosa, que avalia tecnicamente cada amostra. “Todo conhecimentoesensibilidadedoenólogo são empregados neste processo que visa avaliar a qualidade e a evoluçãodovinhobrasileiro. Aqui, abandeira é a dos vinhos brasileiros, independente de marca”, destaca.
DICA
O que pode custar caro, sobretudo quando não se tem boa informaçãoemmãos, éovinho. Quemnunca arregalou os olhos diante dos preços praticados por restaurantes, lojas especializadas e até supermercados? Cecília Aldaz, sommelière do restaurante Oro e apresentadora do programa Um Brinde ao Vinho, do canal Mais Globosat, ensina a escolher vinhos nos supermercados e dá dicas de bons rótulos que são facilmente encontrados nas grandes redes. Nenhum custa mais de R$ 100.
RIO GASTRONOMIA
Já ouviu falar em alimentação plant-based (conceito de alimentação rica e sustentável), kimchi e kombuchá? São tendências da gastronomia contemporânea que serão apresentadas por chefs e produtores durante o evento. Vai ser possível aprender a preparar o Kombuchá, experimentar um parmesão produzido nas margens do Rio Araguaia, no Tocantins. O Rio Gastronomia acontece durante dois finais de semana: de 17 a 19 de agosto e de 23 a 26 de agosto, nos armazéns 3 e 4 do Píer Mauá. Fonte: Jornal O Globo.