Por que voto no PT, ou: uma provocação à esquerda radical
Diário da Manhã
Publicado em 9 de outubro de 2018 às 22:13 | Atualizado há 4 meses
T enho 24 anos recém-completos. Tinha 8 quando vi, por um antigo televisor de tubo, FHC passar a faixa presidencial a Luiz Inácio Lula da Silva. Não entendia nada daquilo à época. Amadureci e desenvolvi minhas aptidões sociais e cognitivas para com o mundo sob governo petista. Tendo-o, portanto, como figura de autoridade. Fui preso sob uma gestão petista (à época este partido ocupando tanto o executivo federal quanto o municipal onde eu residia) por questionar o valor da tarifa do transporte público que eu usava. Passei três anos agrilhoado por medidas cautelares que me restringiam a atuação política. Sob um regime petista.
Isso dito, a diligência política faz-nos ter de avaliar algumas coisas. Não falarei aqui de Bolsa família ou endossamento de qualquer natureza neste sentido. Falarei de algumas premissas básicas que necessariamente têm de ser respondidas pela esquerda radical no seu elementar: a análise tática do momento.
Apesar da relativa inverdade de que “tanto no PT quanto em qualquer outro governo” a classe trabalhadora só perdeu, assumirei, para fins de argumento, como verdadeira esta proposição. Sou um materialista praticamente mitocondrial e levo a sério a tese de que a luta de classes é o motor da história e o vetor explicativo fundamental das diversas questões sociais. Entretanto não se explica assim tão facilmente, e por simplismos, as questões de conjuntura. Assumamos portanto esta tese de que tanto fez o PT como qualquer outro governo faria, ainda que, novamente, eu não entenda ela como verídica.
Uma classe social não é um ente abstrato que paira no ar. Ela é composta por diversos matizes, nuanças, subtilezas, extratos e diferenciações (por vezes até mesmo antagonismos) internas, atravessada por uma série de contradições. A diferença entre uma classe-em-si e uma para-si está precisamente no fato de que do ponto objetivo apresenta-se a classe social pela sua realidade econômica (classe-em-si), mas só pela luta política, e pelo acúmulo de vínculos que esta gera, adquire a classe uma realidade sócio-cultural e política (classe-para-si) coerentemente orientada com seu interesse (para quem precisar de mais: vejam a introdução à “crítica da filosofia do direito de Hegel” escrita por K. Marx ou as primeira e terceira partes do ensaio de G. Lukács “a reificação e a consciência do proletariado”). O momento em que ela passa do “apresentar-se” (classe-em-si) para o “expressar-se” (classe-para-si). Do “existir no mundo e mecanicamente nele intervir”, para o “agir ativa e conscientemente sobre o mundo e produzi-lo”.
“Em miúdos que quer isto dizer”? Quer dizer que no interior da classe trabalhadora existem preconceitos, existem ranços oriundos de uma cultura que, apesar de atualmente urbana e pretensamente diversa, tem enraizamentos ainda não muito distantes numa herança com sérios vícios provincianos e arcaicos quanto a questões como: gênero, raça, respeito geracional, etc. (pra isso entendermos a nível de Brasil não precisamos de mais que um bê-a-bá que, desde um conservador como Oliveira Viana até um respeitado da esquerda como Florestan Fernandes – passando, no meio do caminho, por sujeitos insuspeitos de pouco competentes como Guerreiro Ramos e Sérgio Buarque de Holanda, está catalogado e elucubrado no pensamento social brasileiro). Existem portanto incoerências e atritos que mitigam as possibilidades de formação de vínculos que expressem a identificação dos sujeitos com seus semelhantes pela seu pertencimento a uma mesma classe.
Podemos assumir verdadeiro, numa óptica muito estrita e específica da análise da luta de classes, o argumento de que o PT não contribui para o avanço da luta da classe trabalhadora. A autoidentificação interna desta classe (que contribua para a sua estruturação enquanto sujeito político ativo), entretanto, necessita da eliminação da miríade de preconceitos e pequenas fissuras acima elencadas. Condição sine qua nom para articularmo-nos e organizarmo-nos pela revolução social. É um fato dificilmente questionável que, com todas as limitações intestinas a um governo conciliador, a questão de gênero foi de algum modo tratada nos governos do PT, a questão racial teve ampliação de sua visibilidade, a questão LGBT obteve avanços mínimos, mas com impactos substantivos (não estou aqui a dizer que isto tenha sido fruto da boa vontade do PT, mas que por meio da pressão social vários destes grupos conseguiu extrair deste partidos políticas que as interessassem). Em suma, os diferentes extratos que pertencem à classe trabalhadora puderam minimamente reconhecer-se mais como iguais e menos como diferentes no que tange a questões estritas de identidade (1 – isso ainda não está nem de longe plenamente resolvido; 2 – isso é condição para uma articulação de classe, não algo que naturalmente a viabilize).
Isso é condição necessária para nossa autoidentificação enquanto classe e está radicalmente ameaçada de se perder. Não porque o governo do PT as tornará melhor, mas porque o outro governo as destroçará todas e muitas mais (aqui falo inclusive no campo estritamente econômico, visto que a lista de privatizações almejadas não para de crescer, alijando os bens públicos; a legislação trabalhista medieva ora vigente será mantida e; “no tocante” à previdência os vagos comentários não ensejam muita esperança).
Falei isto na minha primeira manifestação de voto (inclusive havia sido a primeira desde que, de livre e espontânea vontade, tirei meu título aos dezasseis anos para resoluta e convictamente anulá-lo). É inútil enxergar nas eleições o reduto último da nossa emancipação. Se levamos esta afirmação a sério, o voto nulo a todo custo (ou por “princípio moral”) é simplesmente uma incoerência. O que se mostra prudente e coerente é entender a eleição pelo que ela é: um instrumento da democracia burguesa, mas que, como tudo, é perene de fissuras e contradições (um exercício dialético primário ajuda a compreender) que podem ser exploradas. Não disputadas, mas exploradas, exploradas em prol da abolição desta própria estrutura.
O purismo moral não pode impedir-nos de enxergar os fatos. O número de votos acima do esperado no candidato que ora faz frente ao PT demonstra que existem muitos “envergonhados” ainda por se revelar. Do ponto de vista prático isso significa um retrocesso sócio-cultural que afetará toda sorte de “minorias” (entre aspas porque minorias nunca foram). A consequência desagregadora disso, pensando em termos de classe, será incalculável.
A vaidade de arvorarmo-nos no purismo da nossa radicalidade discursiva não deve ser prioridade quando as possibilidades mínimas de articulação da luta social concreta mostram-se ameaçadas ao nível da imprevisibilidade de sua reestruturação no futuro próximo.
Se, por um lado (e eu defendi isto e continuo sustentando), o PT é um neutralizador contumaz das forças radicalizadas da sociedade, por outro um governo de seu oponente seria não a neutralização, mas o extermínio das nossas fileiras, que demoraria gerações para ser reparado.
Muitos têm dito que a radicalidade e a coerência estão em enfrentar de frente o fascismo. Não temos nem a coesão necessária para isso no momento, nem projeto que dê capacidade aglutinadora para produzi-la, a coesão, e fazê-lo, o enfrentamento. A história mostra (peguem de Leandro Konder no “introdução ao fascismo” até um João Bernardo no seu gigante “Labirintos do Fascismo”… passando ainda por obras como “Dialética do Esclarecimento” dos alemães T. Adorno e M. Horkheimer) que o fascismo sempre tende a ampliar-se (como possibilidade) quando a classe trabalhadora apresenta uma radicalidade que insufla em sentido amplo a sociedade sem projeto que dê vetor direcional a esta. Espontaneísmo difuso e romântico nesta altura não nos ajudará.
O que eu disse noutro texto semanas atrás postado haverá de passar por balizas mediante a atual conjuntura, mas, no agregado, continua sustentável: o tempo é de pararmos de curto-prazismo, de pensarmos as possibilidades reais (e bastante módicas) que o pleito eleitoral possibilita e aproveitarmo-nos delas para calma e diligentemente procedermos a uma recomposição das nossas fileiras. Não posso senão chamar delirante aquele que supor que a revolução está às portas e que nosso povo está disposto e organizado para uma radicalização e tomada do poder. S. Zizek tem algum grau de razão ao dizer (o contexto era outro – occupy wall street – mas a lógica aplica-se aqui) que, se Marx estava certo, em seu tempo, na sua 11ª tese sobre Feuerbach de que “os filósofos só interpretaram o mundo, o ponto agora é transformá-lo”, hoje talvez tenhamos de “reinterpretar um mundo que parecemos não muito bem compreender para poder transformá-lo efetivamente”. Isso passa por reavaliarmos nossas forças e saber o que delas fazer e como ampliá-las. Isso leva tempo e precisará de mais do que a urgência cega e o imediatismo infantil.
Não é momento para vaidades morais. É a vida de pessoas que está em jogo. Sim, a classe trabalhadora continua explorada. Sim, nas favelas e periferias, sob governos do PT, a violência contra a população só cresceu e continua a crescer. Sim, eu tremo de amargo na garganta porque detesto este partido e creio que os deméritos que ele apresentou só clarificam ainda mais a percepção de que só nós podemos mudar o mundo em prol daquilo que consideramos uma sociedade melhor.
Mas também sim: o fascismo é uma realidade concreta histórica e que agora nos espreita. Trata-se da ampliação dos estigmas, da relativização perversa de direitos básicos, da guarida para o extravasamento de toda sorte de preconceitos e de escabrosidades contra as quais temos de lutar inclusive dentro das nossas trincheiras para proceder a uma organização de classe politicamente robusta. Pessoas voltaram a relativizar a ditadura civil-militar de 64-85; sentem-se à vontade outras tantas para gritar em coro, numa estação de metrô e a plenos pulmões, que Bolsonaro irá “matar a bixarada”; outras mais creem agora normal externar que lugar de mulher é sim na cozinha; e vários veem com naturalidade um candidato à presidência dizer que o “afrodescendente”, de um quilombo que ele alega ter visitado, “mais leve lá pesava 7 arrobas e que nem pra procriação devia servir mais”; e ganha plausibilidade, ainda, a tese de que o problema do sul/sudeste do país é a imigração nordestina e que o melhor seria “desanexar” a região.
Jamais gostei do PT, mas não é disso que se trata. É em primeiro lugar de ganhos mínimos que sucumbirão e, em segundo, do fato de que o sucumbir destes ganhos nos fragmentará ainda mais enquanto classe. A nossa vaidade de retidão discursiva não deve nos cegar frente à conjuntura. Se por um lado fazemos a história, por vezes isso não sucede pelos exatos caminhos que gostaríamos de seguir. Caso o PT eleito, não teremos nem de longe tempos fáceis, mas esta é reflexão para um segundo momento.
E novamente, para finalizar, repito, engana-se aquele que pensa que quanto pior o estado das coisas, melhor em termos de articulação de classe. Basta olhar os livros de história.
Ps: por ocasião de uma nobre camarada tive acesso a um excerto que muito bem se encaixa no contexto e orna o conteúdo desta epístola pública: “Por ora precisamos de todas estas precauções. Depois… depois, querida, queimaremos o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis” (Machado de Assis)
(Ian caetano é formado em Ciências Sociais pela UFG, mestre em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro e doutorando pela mesma instituição
T enho 24 anos recém-completos. Tinha 8 quando vi, por um antigo televisor de tubo, FHC passar a faixa presidencial a Luiz Inácio Lula da Silva. Não entendia nada daquilo à época. Amadureci e desenvolvi minhas aptidões sociais e cognitivas para com o mundo sob governo petista. Tendo-o, portanto, como figura de autoridade. Fui preso sob uma gestão petista (à época este partido ocupando tanto o executivo federal quanto o municipal onde eu residia) por questionar o valor da tarifa do transporte público que eu usava. Passei três anos agrilhoado por medidas cautelares que me restringiam a atuação política. Sob um regime petista.
Isso dito, a diligência política faz-nos ter de avaliar algumas coisas. Não falarei aqui de Bolsa família ou endossamento de qualquer natureza neste sentido. Falarei de algumas premissas básicas que necessariamente têm de ser respondidas pela esquerda radical no seu elementar: a análise tática do momento.
Apesar da relativa inverdade de que “tanto no PT quanto em qualquer outro governo” a classe trabalhadora só perdeu, assumirei, para fins de argumento, como verdadeira esta proposição. Sou um materialista praticamente mitocondrial e levo a sério a tese de que a luta de classes é o motor da história e o vetor explicativo fundamental das diversas questões sociais. Entretanto não se explica assim tão facilmente, e por simplismos, as questões de conjuntura. Assumamos portanto esta tese de que tanto fez o PT como qualquer outro governo faria, ainda que, novamente, eu não entenda ela como verídica.
Uma classe social não é um ente abstrato que paira no ar. Ela é composta por diversos matizes, nuanças, subtilezas, extratos e diferenciações (por vezes até mesmo antagonismos) internas, atravessada por uma série de contradições. A diferença entre uma classe-em-si e uma para-si está precisamente no fato de que do ponto objetivo apresenta-se a classe social pela sua realidade econômica (classe-em-si), mas só pela luta política, e pelo acúmulo de vínculos que esta gera, adquire a classe uma realidade sócio-cultural e política (classe-para-si) coerentemente orientada com seu interesse (para quem precisar de mais: vejam a introdução à “crítica da filosofia do direito de Hegel” escrita por K. Marx ou as primeira e terceira partes do ensaio de G. Lukács “a reificação e a consciência do proletariado”). O momento em que ela passa do “apresentar-se” (classe-em-si) para o “expressar-se” (classe-para-si). Do “existir no mundo e mecanicamente nele intervir”, para o “agir ativa e conscientemente sobre o mundo e produzi-lo”.
“Em miúdos que quer isto dizer”? Quer dizer que no interior da classe trabalhadora existem preconceitos, existem ranços oriundos de uma cultura que, apesar de atualmente urbana e pretensamente diversa, tem enraizamentos ainda não muito distantes numa herança com sérios vícios provincianos e arcaicos quanto a questões como: gênero, raça, respeito geracional, etc. (pra isso entendermos a nível de Brasil não precisamos de mais que um bê-a-bá que, desde um conservador como Oliveira Viana até um respeitado da esquerda como Florestan Fernandes – passando, no meio do caminho, por sujeitos insuspeitos de pouco competentes como Guerreiro Ramos e Sérgio Buarque de Holanda, está catalogado e elucubrado no pensamento social brasileiro). Existem portanto incoerências e atritos que mitigam as possibilidades de formação de vínculos que expressem a identificação dos sujeitos com seus semelhantes pela seu pertencimento a uma mesma classe.
Podemos assumir verdadeiro, numa óptica muito estrita e específica da análise da luta de classes, o argumento de que o PT não contribui para o avanço da luta da classe trabalhadora. A autoidentificação interna desta classe (que contribua para a sua estruturação enquanto sujeito político ativo), entretanto, necessita da eliminação da miríade de preconceitos e pequenas fissuras acima elencadas. Condição sine qua nom para articularmo-nos e organizarmo-nos pela revolução social. É um fato dificilmente questionável que, com todas as limitações intestinas a um governo conciliador, a questão de gênero foi de algum modo tratada nos governos do PT, a questão racial teve ampliação de sua visibilidade, a questão LGBT obteve avanços mínimos, mas com impactos substantivos (não estou aqui a dizer que isto tenha sido fruto da boa vontade do PT, mas que por meio da pressão social vários destes grupos conseguiu extrair deste partidos políticas que as interessassem). Em suma, os diferentes extratos que pertencem à classe trabalhadora puderam minimamente reconhecer-se mais como iguais e menos como diferentes no que tange a questões estritas de identidade (1 – isso ainda não está nem de longe plenamente resolvido; 2 – isso é condição para uma articulação de classe, não algo que naturalmente a viabilize).
Isso é condição necessária para nossa autoidentificação enquanto classe e está radicalmente ameaçada de se perder. Não porque o governo do PT as tornará melhor, mas porque o outro governo as destroçará todas e muitas mais (aqui falo inclusive no campo estritamente econômico, visto que a lista de privatizações almejadas não para de crescer, alijando os bens públicos; a legislação trabalhista medieva ora vigente será mantida e; “no tocante” à previdência os vagos comentários não ensejam muita esperança).
Falei isto na minha primeira manifestação de voto (inclusive havia sido a primeira desde que, de livre e espontânea vontade, tirei meu título aos dezasseis anos para resoluta e convictamente anulá-lo). É inútil enxergar nas eleições o reduto último da nossa emancipação. Se levamos esta afirmação a sério, o voto nulo a todo custo (ou por “princípio moral”) é simplesmente uma incoerência. O que se mostra prudente e coerente é entender a eleição pelo que ela é: um instrumento da democracia burguesa, mas que, como tudo, é perene de fissuras e contradições (um exercício dialético primário ajuda a compreender) que podem ser exploradas. Não disputadas, mas exploradas, exploradas em prol da abolição desta própria estrutura.
O purismo moral não pode impedir-nos de enxergar os fatos. O número de votos acima do esperado no candidato que ora faz frente ao PT demonstra que existem muitos “envergonhados” ainda por se revelar. Do ponto de vista prático isso significa um retrocesso sócio-cultural que afetará toda sorte de “minorias” (entre aspas porque minorias nunca foram). A consequência desagregadora disso, pensando em termos de classe, será incalculável.
A vaidade de arvorarmo-nos no purismo da nossa radicalidade discursiva não deve ser prioridade quando as possibilidades mínimas de articulação da luta social concreta mostram-se ameaçadas ao nível da imprevisibilidade de sua reestruturação no futuro próximo.
Se, por um lado (e eu defendi isto e continuo sustentando), o PT é um neutralizador contumaz das forças radicalizadas da sociedade, por outro um governo de seu oponente seria não a neutralização, mas o extermínio das nossas fileiras, que demoraria gerações para ser reparado.
Muitos têm dito que a radicalidade e a coerência estão em enfrentar de frente o fascismo. Não temos nem a coesão necessária para isso no momento, nem projeto que dê capacidade aglutinadora para produzi-la, a coesão, e fazê-lo, o enfrentamento. A história mostra (peguem de Leandro Konder no “introdução ao fascismo” até um João Bernardo no seu gigante “Labirintos do Fascismo”… passando ainda por obras como “Dialética do Esclarecimento” dos alemães T. Adorno e M. Horkheimer) que o fascismo sempre tende a ampliar-se (como possibilidade) quando a classe trabalhadora apresenta uma radicalidade que insufla em sentido amplo a sociedade sem projeto que dê vetor direcional a esta. Espontaneísmo difuso e romântico nesta altura não nos ajudará.
O que eu disse noutro texto semanas atrás postado haverá de passar por balizas mediante a atual conjuntura, mas, no agregado, continua sustentável: o tempo é de pararmos de curto-prazismo, de pensarmos as possibilidades reais (e bastante módicas) que o pleito eleitoral possibilita e aproveitarmo-nos delas para calma e diligentemente procedermos a uma recomposição das nossas fileiras. Não posso senão chamar delirante aquele que supor que a revolução está às portas e que nosso povo está disposto e organizado para uma radicalização e tomada do poder. S. Zizek tem algum grau de razão ao dizer (o contexto era outro – occupy wall street – mas a lógica aplica-se aqui) que, se Marx estava certo, em seu tempo, na sua 11ª tese sobre Feuerbach de que “os filósofos só interpretaram o mundo, o ponto agora é transformá-lo”, hoje talvez tenhamos de “reinterpretar um mundo que parecemos não muito bem compreender para poder transformá-lo efetivamente”. Isso passa por reavaliarmos nossas forças e saber o que delas fazer e como ampliá-las. Isso leva tempo e precisará de mais do que a urgência cega e o imediatismo infantil.
Não é momento para vaidades morais. É a vida de pessoas que está em jogo. Sim, a classe trabalhadora continua explorada. Sim, nas favelas e periferias, sob governos do PT, a violência contra a população só cresceu e continua a crescer. Sim, eu tremo de amargo na garganta porque detesto este partido e creio que os deméritos que ele apresentou só clarificam ainda mais a percepção de que só nós podemos mudar o mundo em prol daquilo que consideramos uma sociedade melhor.
Mas também sim: o fascismo é uma realidade concreta histórica e que agora nos espreita. Trata-se da ampliação dos estigmas, da relativização perversa de direitos básicos, da guarida para o extravasamento de toda sorte de preconceitos e de escabrosidades contra as quais temos de lutar inclusive dentro das nossas trincheiras para proceder a uma organização de classe politicamente robusta. Pessoas voltaram a relativizar a ditadura civil-militar de 64-85; sentem-se à vontade outras tantas para gritar em coro, numa estação de metrô e a plenos pulmões, que Bolsonaro irá “matar a bixarada”; outras mais creem agora normal externar que lugar de mulher é sim na cozinha; e vários veem com naturalidade um candidato à presidência dizer que o “afrodescendente”, de um quilombo que ele alega ter visitado, “mais leve lá pesava 7 arrobas e que nem pra procriação devia servir mais”; e ganha plausibilidade, ainda, a tese de que o problema do sul/sudeste do país é a imigração nordestina e que o melhor seria “desanexar” a região.
Jamais gostei do PT, mas não é disso que se trata. É em primeiro lugar de ganhos mínimos que sucumbirão e, em segundo, do fato de que o sucumbir destes ganhos nos fragmentará ainda mais enquanto classe. A nossa vaidade de retidão discursiva não deve nos cegar frente à conjuntura. Se por um lado fazemos a história, por vezes isso não sucede pelos exatos caminhos que gostaríamos de seguir. Caso o PT eleito, não teremos nem de longe tempos fáceis, mas esta é reflexão para um segundo momento.
E novamente, para finalizar, repito, engana-se aquele que pensa que quanto pior o estado das coisas, melhor em termos de articulação de classe. Basta olhar os livros de história.
Ps: por ocasião de uma nobre camarada tive acesso a um excerto que muito bem se encaixa no contexto e orna o conteúdo desta epístola pública: “Por ora precisamos de todas estas precauções. Depois… depois, querida, queimaremos o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis” (Machado de Assis)
(Ian caetano é formado em Ciências Sociais pela UFG, mestre em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro e doutorando pela mesma instituição