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Raw: a crítica cinematográfica da realidade juvenil no capitalismo tardio

Redação DM

Publicado em 27 de dezembro de 2017 às 22:03 | Atualizado há 7 meses

Julia Ducournau, em sua estreia nas grandes telas, mostrou a que veio. A di­retora francesa entrega uma feroz crítica social feita no que estética e estilisticamente há de mais lapidado no cine­ma europeu contemporâneo. Raw conta a história de Justi­ne, uma jovem introspectiva; de família controladora, dis­tante afetivamente e mora­lista; passando pela fase en­tre adolescência e juventude, o que é representado pelo seu ingresso numa faculdade, que calha ser de veterinária.

A maneira colapsada pela qual interagem os jovens na obra é afresco fílmico daqui­lo que vivem em geral estes su­jeitos. Justine é alvo de expec­tativas mil, o que a faz nervosa, apreensiva. Conjugado a isso há o moralismo puritano fa­miliar que a fez casta (nos sen­tidos sexual e social do termo). E, de repente, é jogada num meio de extremismo sensorial e experiencial. Reduto onde jo­vens, todos por certo tão castos quanto ela, antes, ainda que não admitam ou aparentem, na fal­ta de uma mediação saudável de experiências tão marcantes (como a primeira transa, o pri­meiro consumo de drogas, a de­cisão da carreira profissional), fazem do que vale os impactos e o excesso. É poeticamente tra­gibela a cena em que Justine e sua irmã, separadas de uma bri­ga no pátio da faculdade, são se­guradas pelos cachecóis, como animais em coleiras, enquanto o restante dos discentes sacam seus telefones encamerados, in­teressados apenas em registrar a barbárie.

Provavelmente um filme in­compreendido pela metáfora que opta por utilizar, a do ca­nibalismo. Justine, vegetaria­na desde sempre por imposição familiar, desenvolve uma com­pulsão ao, numa iniciação (co­nhecida cá por trote) feita pe­los teus veteranos, ser obrigada a comer um miúdo de coelho. A alegoria do canibalismo, o mis­to de lascívia e culpa que mos­tra o filme quanto à volição vi­ciada dela (diga-se de passagem consoada com uma primorosa trilha sonora), de compulsiva­mente consumir sangue e car­ne humanos, corre em parale­lo com os excessos das baladas, das drogas, das descobertas ocorrentes apenas no desmedi­do. A tentativa de libertação que palpita contra a repressão e as amarras apenas pelo contras­te antípoda (que basicamente, como qualquer exercício dialéti­co demonstra, só reforça o senti­do e a sensação destas mesmas repressões e amarras).

As expectativas em torno dela, um prodígio estudantil, que pela pressão e pela falta de lugar que um destaque acadê­mico tem no meio das relações cotidianas onde a genialida­de é mal vista (precisamente pelo “canibalismo social” em que vivem todos) fá-la cada vez mais traumatizada, mais ten­dida ao escapismo.

O filme mostra uma reali­dade que na Europa já vem de alguns anos. Em Brasil, com as respectivas peculiaridades (escusado dizê-lo), uma con­junção de fatores que vem a se imiscuir, e chegar, mais re­centemente. O aumento da in­formação e da velocidade com que esta nos chega, em con­junto com a escatologização da vida pela rede social do es­petáculo; com o moralismo social imperante, onde tabus e mais tabus são erguidos, fa­zendo com que todas as curio­sidades e interesses sejam mo­tivo de vergonha, ocultamento e veredito alheio (o que, por ri­cochete, tem como par a de­vassa pública das experiên­cias); a pressão pela incerteza quanto ao futuro (o sociólo­go Ricardo Antunes tem estu­dos interessantes, onde mos­tra como a falta de perspectiva de encontrar emprego na área de formação por parte dos jo­vens faz com que boa parte de­les engrosse as fileiras da ex­trema direita… realidade que tem acenado para nosso país); a crise sistêmica social e eco­nômica… tudo isso modela a experiência de uma juventude que, do castramento absoluto à pretensa liberdade plena na re­alidade posta pela vida univer­sitária, vê-se embriagada, esta­fada e overdoseada.

Outra cena que bem repre­senta isso metaforicamente é a de quando Justine encon­tra-se debaixo de um cober­tor, acordada no meio da noi­te, e começa a sentir alguém batendo nela por de fora, mas nem consegue retirar o cober­tor, nem consegue saber quem a agride. Há ainda uma outra, quando de um professor que a ameaça perniciosamente, por ela ser uma aluna excepcional, mas ter tido a prova colada por um outro aluno (e ele a inque­re para que ela diga se a cola foi de permissão dela, ou não), em que começa a vomitar e mais vomitar tufos de cabelo: a for­te representação metafórica de um ataque de pânico.

A trilha sonora principal é assinada pelo britânico Jim Williams, com um genião Tech­no-órgão que entra, em alto vo­lume, nos momentos de maior tensão. A montagem e os enqua­dramentos do filme, como feito no cinema europeu de audacio­sa estirpe, são de forte contras­te – em termos de cor, como na cena bestial em que Justine tem a primeira experiência sexual e, no momento de gozo, morde o próprio braço ao ponto de arran­car um naco, quando então a câ­mera muda de ângulo e ela olha para nós diretamente, com os dentes ainda encravados, como um tigre com uma presa à boca.

O final do filme é um pouco contrastante com a crítica geral que propõe, visto que pode dar margem para interpretação em uma perspectiva biologicista da diatribe que, no restante do filme, dá-se a entender como social. De todo modo, creio, é esse um final passível de com­preensão coerente com o res­tante da obra, como uma espé­cie de experiência repetida (e deixo a frase vaga de propósi­to). Alongar-me-ia nessa quere­la, mas como a proposta destas críticas não é entregar o filme antes que seja visto, deixarei à boa vontade intuitiva do es­pectador a ruminação sobre os sentidos últimos da opus.

Um filme que surpreende em direção dado o fato de que sua executora passou boa par­te da carreira profissional só no ramo da escrita de roteiros. A boa pena é inegável, mas o traço cinematográfico provou­-se não acessório, mas instru­mento de manuseio nas mãos de alguém que, senão experi­ência, certamente tem talen­to. Relativamente curto (uma hora e meia de filme), vale ser experimentado até o fim. Gos­tando ou desgostando, filme de grande valia, seja para criticá­-lo, seja para endoçá-lo.


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