Rodolpho Furtado inaugura exposição com ilustrações que valorizam o patrimônio
Redação DM
Publicado em 9 de fevereiro de 2018 às 00:15 | Atualizado há 6 meses
A o olhar a cidade de Goiânia o transeunte tem que estar atento. A cidade não é para amadores. Carros apressados avançam no sinal vermelho, alguém surge ao lado com um panfleto de uma ótica, várias marquises enfeitadas com anúncios coloridos e um pedacinho da fachada do prédio, aparecendo timidamente no fundo dessa paisagem. A maioria dos prédios do Setor Central, local onde a cidade surgiu, trazem o conceito arquitetônico de art-déco. O estilo decorativo surgiu em Paris, no ano de 1925, mas se popularizou no ano de 1930. A cidade de Goiânia foi pensada neste período e inaugurada no ano de 1933. A capital do Estado de Goiás é uma referência nacional do estilo. Porém, um turista desinformado negaria esse título.
É preciso entender as nuances da cidade antes de criticar ou mesmo definir. Outros estilos arquitetônicos e urbanistas se espalham pela região metropolitana. Bosques, becos, grafite nas paredes, outdoors com propagandas, bustos de genocidas e tributo ao povo indígena se dividem nesse mesmo espaço. É preciso estar atento para entender Goiânia, para perceber os detalhes que formam esse conceito de cidade. O arquiteto Rodolpho Furtado é o criador do Projeto Pigmentos, que propõe perceber os traços, as imagens e as cores da cidade, a fim de incentivar a valorização do patrimônio goianiense.
Nesta sexta-feira (9/02), o artista lança uma exposição com essas imagens na Livraria Palavrear. O vernissage começa por volta das 18h30 e a entrada é gratuita. Em entrevista para o Diário da Manhã, Rodolpho Furtado falou um pouco sobre sua relação com a cidade e sua arquitetura. “Uma das grandes questões discutidas é justamente a educação patrimonial, ou seja, mostrar para a própria população a importância da valorização do nosso patrimônio”, disse.
A entrevista completa você confere abaixo:
– Qual a principal característica que você destaca da arquitetura de Goiânia? Existe algum detalhe específico que seja exclusivamente goiano?
É complicado destacar elementos exclusivamente goianienses da arquitetura, já que a cidade foi composta por diversos imigrantes, muitos vindo de São Paulo e do nordeste, mas muitos do exterior também, incluindo poloneses, alemães (que inclusive fizeram o plano do Setor Jaó) e principalmente árabes. Toda essa mistura se une com as influências arquitetônicas que mais se destacavam no Brasil (arquitetura colonial, barroca e eclética) e com a arquitetura vernacular – em que se emprega materiais e recursos do próprio ambiente em que a edificação é construída, e os saberes construtivos e de organização espacial são definidos pela vivência, cultura e senso comum – criando algo particular que agrega vários elementos. Mas podemos destacar algumas características que, apesar de não serem exclusivamente goianienses, representam bastante para nossa cultura: elementos como a sacada e a varanda são muito marcantes. Outra característica que pode ser destacada é que, sendo o segundo estado mais pobre do país na época da construção de Goiânia e devido o difícil acesso ao interior do país, a construção de uma capital moderna com recursos limitados e localidade isolada fez com que nossas construções art déco tivessem elementos e soluções próprias aos recursos disponíveis. Por isso é tão difícil comparar a arquitetura art déco de Goiânia com a de Nova York ou Chicago. Desse modo, ela apresenta caráter local ou regional.
– Muitas fachadas de prédios antigos, do Setor Central, por exemplo, estão escondidas atrás de outdoors e anúncios de lojas. Você acredita que é preciso uma revitalização dessas áreas? Esse novo cenário visual não é parte da característica mutável da cidade?
A questão do patrimônio é e sempre será uma questão delicada, sendo extremamente difícil de se dar uma resposta clara como “sim” ou “não”. Robert Venturi, renomado arquiteto norte-americano, é um dos autores do livro Aprendendo com Las Vegas, em que são destacadas as várias formas que os letreiros, os outdoors, a arquitetura extravagante e peculiar de Las Vegas criou toda a iconografia da cidade. Como dizer que isso já não faz parte do patrimônio daquele lugar? Mas acredito que no caso de Goiânia a questão dos letreiros não representa nossa sociedade, não há afetividade nem fazem parte da memória coletiva. Claro que há alguns elementos que de tão chamativos ou peculiares acabam por gerar certa afetividade e reconhecimento na população, mas prevalecem como apenas elementos de indicação comercial. E a geração desse grande caos visual acaba prejudicando nosso patrimônio, que perde destaque e passa despercebido.
– Projetos como o seu resgatam esse olhar, as vezes perdido entre propagandas. Quais outras ações podem colaborar para a preservação da arquitetura?
Uma das grandes questões discutidas é justamente a educação patrimonial, ou seja, mostrar para a própria população a importância da valorização do nosso patrimônio. Tornar o cidadão o próprio fiscal da conservação desses edifícios, pois se a população não valoriza sua própria história, por que o poder público o faria? Novamente nos deparamos com uma questão delicada: um dos motivos da falta de valorização do patrimônio é a falta de receptividade para com a população, a falta de reconhecimento como algo que nos pertence ou falta de afetividade com aquele lugar. Dessa forma entende-se que não basta preservar ou tombar legalmente um edifício se ele não for devolvido de forma ativa para a sociedade. Veja o caso do Jóquei Clube, em que vários cidadãos goianienses tem memórias de nadar em suas piscinas e aproveitar de seus amplos espaços. Mas agora, sem qualquer uso ativo, o edifício se encontra em ruínas, com uma enorme dívida e com risco de ser vendido para empresas privadas. Há um grande movimento entre os arquitetos para preservar a estrutura projetada pelo renomado arquiteto Paulo Mendes da Rocha, mas preservar a carcaça e manter o lugar sem uso para a população é condená-lo a ser uma ruína esquecida e sem valorização. Um dos objetivos do Projeto Pigmentos é despertar a memória e a afetividade que a população tem com certos edifícios, gerando valorização e ânsia por vivenciar aquele espaço.
– Particularmente, qual a importância da arquitetura? Qual sua proximidade desta área de estudo?
Arquitetura é a criação e organização do espaço. É o vazio, o delimitado e o preenchido, sombra e luz, razão e emoção, é a expressão física da história e cultura de uma sociedade. Quando visitamos outra cidade, estado ou país, estamos indo para vivenciar aquele lugar. E o que é aquele espaço físico senão arquitetura? A organização dos ambientes das casas muda de cultura para cultura, pois a arquitetura é reflexo do nosso modo de vida. O modelo de casa que habitamos no Brasil mudou bastante no decorrer dos séculos, acompanhando a evolução dos valores da sociedade. Questões ergonômicas, de escala, até o padrão de portas que utilizamos nos ambientes representa nossa cultura, nossa forma de nos movermos no ambiente, as dimensões padrão de nossos corpos. Arquitetura é a forma que encontramos de expressar materialmente nossa cultura, despertando sentidos com formas receptivas aos nossos corpos. Mesmo antes de ser arquiteto urbanista, eu sempre fui fascinado pela nossa relação com a cidade e como pequenos detalhes afetam a forma como nos posicionamos nela. Por exemplo, um edifício térreo que se encontra mais próximo da escala humana nos transmite mais acolhimento que um edifício de 30 andares, que pode provocar intimidação. As possibilidades são infinitas e subjetivas, o que torna tudo tão fascinante.
– Consegue indicar algum trabalho artístico que também se baseia na arquitetura da cidade? Você utilizou alguma referência na composição desse trabalho?
Sou fascinado pelos pôsteres que cidades como Chicago e Nova York investiram para criar propaganda divulgando a vida moderna da cidade, principalmente pós Primeira Guerra Mundial (décadas de 1920 e 1930), quando o movimento Art Déco se expandiu. Os pôsteres ganharam um novo significado, tendo grande importância nessa divulgação da vida moderna, como vemos nas ilustrações produzidas por William W. Crouse, um dos principais representantes dessa arte. Também me inspiro e acompanho vários fotógrafos/artistas que divulgam seu trabalho no Instagram e que encontraram na arquitetura formas de se expressar. Posso destacar Burton Rast (@ misterburton), que produz imagens com fortes contrastes de luz e sombra criando uma dramaticidade fantástica; @minimalexperience e @drcuerda, que criam imagens divertidas e intrigantes com pequenos detalhes da cidade; perfis peculiares como o @top_ of_water_tower, que destaca diferentes tipos de caixas d’água no Japão; e o perfil @accidentallywesanderson, que publica fotografias que possuem uma linguagem semelhante à usada pelo cineasta estadunidense em seus filmes. Inclusive o cinema foi uma das inspirações por trás da ideia do Projeto Pigmentos. Através de uma matéria que li sobre como a paleta de cores afeta na atmosfera criada nos filmes eu decidi aplicar o mesmo conceito em Goiânia e tentar destacar a atmosfera gerada pelos edifícios da cidade.
– A exposição fica até qual data? Fale um pouco sobre essa mostra.
A exposição começa dia 9 de fevereiro, com vernissage aberta ao público a partir das 18h30, e permanece na Livraria Palavrear até o fim do mês. Desde que comecei o projeto em outubro de 2017 houveram vários pedidos para organizar uma exposição do trabalho (inclusive da Sociedade Art Déco de Goiânia – Sodeco), e após o convite feito pela arquiteta Helloá Fernandes (proprietária da livraria junto com seu marido Wilson Rocha) para que a exposição fosse realizada na Palavrear, tudo começou a se encaixar para que isso acontecesse. Houve todo um cuidado de preservar o sobrado no qual se acomoda o estabelecimento – construído na década de 1970 por um alemão que veio para Goiânia após a Segunda Guerra Mundial – desde a conservação de sua fachada até o cuidado com as esquadrias que fazem referência ao art déco. Dessa forma acredito que a proposta da casa e do Projeto Pigmentos de valorização do patrimônio goianiense casaram bem para a realização da exposição. Nessa mostra estarão algumas das imagens que mais se destacaram no perfil do Instagram e duas imagens inéditas, agora em formato de quadros.