Sem papas na língua
Redação DM
Publicado em 27 de fevereiro de 2018 às 01:02 | Atualizado há 6 meses
O pintor e escultor Jorginho Marques é um homem de muitas criações, ideias e palavras. Com mais de 40 anos de carreira, já se enveredou por diversos caminhos das cores. Mas para ele, uma arte sem questionamento não tem razão de ser. Assim, segue na busca de uma obra engajada: foi um dos precursores em transformar sucata em obra prima, trazendo reflexões sobre sustentabilidade – hoje muito em voga – lá nos idos finais dos anos de 1970 e início da década de 1980 (uma época que considera o auge da arte plástica goianiense, incentivada por nomes como os saudosos Cleber Gouveia e D.J. Oliveira).
Nos dias de hoje, continua criando incansavelmente. A cidade é a inspiração principal para Jorginho. É a urbanidade o direciona a uma arte que ele define como construtivista voltada à metrópole que nasceu em meio à natureza e a substituiu. Um dia, por exemplo, a imagem de dois tucanos sobrevoando por entre os prédios da Capital lhe pareceu quase uma cena de ficção. Chegou ao seu ateliê, com a ideia de animais contracenando com a cidade, e se pôs a pintar.
Autêntico e fazendo a linha do artista excêntrico sem papas na língua, em entrevista ao DMRevista, soltou alfinetadas como: “Minha arte pode ser uma m… mas ela tem a minha cara. Não copio de ninguém”. Assim, logo vê-se que deve passar pela cabeça de Jorginho uma avalanche de ideias, que ele coloca em prática não apenas nos vários argumentos, como em uma intensa produção artística. “Eu crio todos os dias. Se me chamarem para fazer exposições, tenho muitas séries inéditas em meu ateliê”, conta.
Contudo, o grande problema exposto pelo artista trata-se da falta de oportunidade para mostrar seu trabalho. Para ele, a grande culpada desta situação é a ausência de uma política cultural mais democrática e um diálogo mais próximo dos secretários de cultura e artistas goianos. “Acredito que a arte goiana de hoje só funciona a certas panelinhas”, dispara.
Salões de pinturas, galerias municipais e melhor aproveitamento de espaços como Centro Cultural Oscar Niemeyer, as praças Cívica e Universitária foram algumas das sugestões que o artista apontou para que a arte de Goiás – que para ele possui muitos artistas criativos, prospere de forma mais igualitária. “O goiano é um ótimo artista. Tem a arte dentro dele”, diz.
Na redação para ser um dos entrevistados desta coluna – o artista que se já se candidatou em 2014 para vereador, mas não foi eleito – falou o que parecia estar engasgado há muito tempo, quase sem pausa para respirar. Até respondia às perguntas que mesmo criava e surgiam enquanto analisava o contexto artístico local. Confira a seguir alguns dos pontos tocados na conversa com artista.
ENTREVISTA JORGINHO MARQUES
- CARREIRA
Comecei a criar ainda criança, minha avó era artista plástica anônima, que me ensinou a desenhar os primeiros palhacinhos. Na minha adolescência, aos 13 anos, comecei a fazer teatro. O teatro e artes plásticas se acasalaram muito bem. Pois, os cenários dos espetáculos são como instalações. Tem tudo a ver. Eu participei de salões, de festivais de arte, salões da Caixego, o Prêmio BEG… Tinha muita coisa interessante que foi deteriorando. A partir de 1979 comecei a fazer um trabalho de reciclagem. Fui um dos primeiros artistas a trabalhar com material reaproveitável. Fiz várias esculturas de sucata. Participei de salões aqui em Goiás e no Brasil. Nunca expus fora por falta de condições financeiras, mas eu já fui convidado para expor Inglaterra e Portugal em vários lugares. Tem quadro meu no Japão, Nova Iorque, Londres…
- NATUREZA URBANA
Comecei a trabalhar com construtivismo e trabalhos geométricos. Um dia estava perto da minha casa, em uma praça na T 37, e vi um casal de tucanos voando entre os prédios. Até comentei com um amigo que aquela cena parecia até um filme de ficção. Quando cheguei no meu ateliê, comecei a pintar esta relação entre o construtivismo e o espaço urbano. Comecei a pintar tucano e beija-flor como personagem urbano. Ao mesmo tempo abordei problemas urbanos como a violência, o stress das cidades. Falo da alma e do caráter urbano. Vou soltar uma série agora de pessoas sendo agredidas nos ônibus. E como vou fazer isso? Vou explicar tudo isso através da expressão das pessoas.
- CONTEXTO ARTÍSTICO DE GOIÁS
Com a morte da Célia Câmara (marchand respeitada, que promovia exposições e eventos, tanto em Goiânia como em Brasília) acredito que as artes plásticas de Goiânia ficaram sem movimento. Um exemplo é que para escolher o secretário da cultura, ela tinha que participar. Os movimentos artísticos também tinham que participar. Vejo hoje que as mesmas figurinhas estão mandando na cultura do Estado há três ou quatro décadas. Não mudam as pessoas. A arte ficou morta. Antes tínhamos salões de novos valores todos anos em seguida estes artistas eram inseridos no mercado. No final dos anos 70 e começo dos 80, tinha quase 40 galerias de arte em Goiânia. Tinha semana em que se abriram quatro exposições. Não vejo mais aquela movimentação. Essa é a minha maior decepção. A política pública em relação às artes plásticas deveria ser mais aberta e os espaços deveriam ser mais democráticos.
- SOLUÇÔES
Poderíamos ter salões de arte. Vejo que não se tem muita criatividade atualmente. Só se tem poder. Aí você me pergunta: Está credenciado a falar isso? Eu respondo que sim, tenho mais de 40 anos de carreira. Nas duas últimas décadas o mercado imobiliário de Goiás era o mercado mais aquecido do país. Automaticamente, os artistas plásticos deveriam ter sido inseridos nisso aí. O carnaval também é uma ótima oportunidade de unir diversas artes, já que nele há a presença do artistaplástico, dopoeta, do músico e do político. Você vai para a Praça Cívica tem um painel do Cléber Gouveia completamente detonado. Você vai na Praça Universitária e nota um desrespeito com os artistas. Locais como estes deveriam ser um espaço livre para shows, palestras. Falta sensibilidade dos gestores culturais. Vejo que falta em Goiânia é ter um secretário de cultura e não um político na cadeira de secretário. Um artista como secretário. Nunca tivemos um secretário de cultura. Tivemos um representante do político na secretaria de secretário de cultura. O secretário precisa ter uma relação com o artista. Falta esse elo de ligação para o cenário crescer e ligar todo mundo. Hoje, por exemplo, no Estado não temos uma secretaria de cultura própria, temos a Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte (Seduce). Acredito que não é possível que uma mesma pasta cuide da educação, com todos os seus problemas e da cultura e do esporte ao mesmo tempo.
- SAUDOSISMO
Nas décadas de 1970 e 1980 os artistas eram mais unidos. Não sei se por causa da Ditadura Militar, em que muitos artistas estavam lutando juntos contra o sistema.. A arte era um instrumento contestador e isso unia a classe. Tinha a qualidade. Os artistas visitavam um ateliê do outro e, o mais interessante é que os críticos e intelectuais também frequentavam os ateliês dos artistas e isso gerava um movimento forte. Nas escolas também tinham manifestações culturais fortes.
- LEIS DE INCENTIVO
Com as leis de incentivo à cultura, os artistas ficam meio que escravos de um sistema. Porque o que é a função da secretaria municipal e estadual de cultura? É criar projetos culturais. Então estas leis vieram para tirar a responsabilidade da secretaria e colocar no artista. Artista não é para fazer projeto. É para fazer arte. Artista não entende nada de lógica, de estatística e de mercado. Artista entende de criar, de expôr sua alma de lidar com o seu eu e a sociedade.
- IMPORTÂNCIA DA CULTURA
Esta violência que está aí hoje é tudo falta de cultura. É falta das pessoas gostarem de frequentar uma exposição, terem mais acesso à leitura, cinema e música. As pessoas não tem como extravasar os sentimentos. Então a cultura é fundamental para formar o caráter e cidadania na sociedade. A maior forma de inclusão social é a arte. Por que não faz vários grupos para dar aula de arte ou uma feira aberta de todas as artes, para que as pessoas terem o contato direto com arte? Acho que temos que ter mais galerias. Porque para mim, galeria é galeria e museu é museu. Está passando da hora de se criar uma galeria municipal de artes plásticas, que é uma coisa mais independente, mais sólida.
Trabalho do artista traz questionamentos sobre urbanidade, sobretudo a relação distante da cidade com a natureza. Confira a seguir um pouco de seu trabalho